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Et tu, Pulitzer?

Na semana passada, aconteceu no mundo cultural uma surpresa cujo tamanho só pode ser comparado com a notícia de cerca de um ano e meio atrás, aquando da atribuição do Nóbel da Literatura a Bob Dylan. Desta vez, o Prémio Pulitzer, um premio limitado aos Estados Unidos mas, para os profissionais, de peso quase igual (se bem que muito mais simbolicamente remunerado) na categoria de música foi atribuído a um artista hip-hop. Este prémio é habitualmente atribuído a uma obra musical de um autor americano que teve a sua estreia ou primeira gravação no ano em questão.

Não só que foi a primeira vez que foi premiado um álbum não clássico ou jazz (raramente) mas o facto de ser contemplado o género musical de hip-hop resultou em algum alvoroço entre os profissionais do ramo académico. Uma tendência conservadora dos júris da música fez esperar mais de 30 anos mesmo o profeta do minimalismo, Steve Reich, depois de ter dado o início a este estilo, mas alguns nomes de renome mundial, tanto clássicos (Philip Glass) como de jazz (Duke Ellington), nunca o receberam e, tal como no caso deste último, foram mesmo recusados.

Tendo perdido (pela terceira vez consecutiva) a corrida para o Grammy atribuído para o álbum do ano, Kendrick Lamar, um californiano de 30 anos e essencialmente um rapper, recebeu este prémio com que provavelmente nem pensou a sonhar. O júri mostrou-se orgulhoso por “ter chegada a altura” para ser premiada a melhor obra, seja de que género for. A citação do prémio refere-se a “uma colectânea de canções virtuosísticas unidas por sua autenticidade vernacular e dinamismo rítmico, oferecendo esboços da complexidade da vida moderna afro-americana”, e a administradora do Prémio proclamou-o como “o grande momento da música hip-hop e do Prémio Pulitzer”. Aparentemente votado por unanimidade, o álbum “DAMN” foi lançado em abril do ano passado. Conta com as colaborações de Rihanna e U2 e chegou a encabeçar as listas “top” (tornou-se “platina” dentro de um mês e já somou mais de 3 milhões de vendas), falando sobre as questões polémicas de raça, religião e o fardo de êxito comercial. O artista também atuou no intervalo do jogo final do futebol americano de nível universitário e supervisionou a banda sonora de “Black Panther”.

E enquanto uns compositores clássicos chegaram a referir-se a esta escolha como “insultuosa” outros abraçaram-na. O próprio prémio é atribuído em 21 categorias, mas o vencedor na área de jornalismo (talvez o mais cobiçado e divulgado) recebe, para além dos habituais 15 mil USD, uma medalha de ouro. A ver vamos, se a atribuição deste prémio conseguirá expandir o impacto do disco na sociedade em geral, no sentido contrário daquele que é habitual para a música erudita (não me parece que no passado a atribuição do Pulitzer ajudou na divulgação da obra premiada para além do “cerco” em que se fecham os puristas da música clássica contemporânea – e uma abertura no sentido contrário, depois da atribuição deste ano, também seria algo surpreendente, mas muito bem-vinda). Se o contar da história autobiográfica do crescimento do jovem rapper, naquele meio social intrincado e mais que complexo, valerá para facilitar o diálogo social e promover a aproximação de parte a parte – no fundo, se à música se pode efectivamente atribuir a qualidade de “linguagem universal”, tão badalada mas tão mal entendida e empregada. Se, afinal, a música consegue desempenhar talvez a mais importante das suas funções.