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Com ou sem batom

A pior inimiga da mulher pode ser a própria mulher

Li esta semana um artigo que me arrepiou a alma. Andava eu a folhear uma revista no cabeleireiro – o meu espaço de eleição para pôr em dia a leitura cor de rosa enquanto o tecido capilar se reabilita dos maus tratos do dia a dia – quando a minha atenção se deteve na crónica de uma humanistic master&trainer coach, assim se apresentava a autora, intitulada “Atreva-se a ser...”. É claro que, de imediato, a dúvida se me instalou quanto ao desafio implícito nas palavras grafadas em maiúsculas, impelindo-me a descobrir a dimensão do repto que timidamente assomava por entre as linhas do que parecia ser um singelo artigo. Continuei, pois, a leitura num misto de curiosidade e de interesse, recetiva até a me atrever não sei bem a quê, desde que esse quê me acordasse da letargia do fim de semana.

O texto abria com uma intrigante advertência aos “senhores” no sentido de o articulado ser “só para senhoras”. Revirei os olhos, na verdade, mas mantive a fé. Afinal, em dia de folga há mais tolerância, principalmente quando se é convidado a ler um artigo escrito por uma mulher jovem, “só para senhoras” e cujo mote seria a celebração do Dia Internacional da Mulher, uma efeméride que, no entender da signatária, se impunha por ainda haver “muita coisa para mudar nas nossas próprias cabeças”. Ou seja: na minha e na de todas as mulheres portuguesas.

Num crescendo de mal contida estranheza, os meus olhos foram perscrutando, parágrafo a parágrafo, que “muita coisa” seria essa que carecia de mudança. A primeira tinha a ver com uso do batom que, contrariamente ao que a maioria julga, escrevia a especialista, não é sinal de futilidade, mas de feminilidade. Aliás, o repto era esse mesmo: “atrever-se a dar brilho à essência feminina”.

Em tópicos formulados a negrito, a articulista reduzia o feminino a quatro asserções universais, instando “as senhoras” a repararem na sua “doçura”, no “poder da empatia”, no seu “corpo” e no seu “brilho” através de um sugestivo uso do imperativo à mistura com intrincadas interrogações retóricas. Tudo isto para, assim, poderem perceber que é por aí que a mulher deve conquistar o seu lugar no mundo. Sim, porque, afinal, aquilo que há para “mudar nas nossas próprias cabeças”, na minha e na de todas as mulheres portuguesas, é essa ideia peregrina de que as mulheres, não obstante as diferenças morfológicas e o binómio feminilidade/masculinidade, são iguais aos seus pares masculinos no que realmente interessa. E se dúvidas eu ainda tivesse sobre a filosofia da prosa de fim de semana, a leitura do seu derradeiro ponto dissipou-as num ápice: “Repare no seu corpo – já viu que tem curvas carregadas de beleza, numa imitação quase perfeita dos elementos mais belos da natureza? Já viu alguma flor em linha reta? Não tenha medo de as assumir.”

Confesso que já por esta altura a tolerância do tal dia de folga se esvaíra por completo para dar lugar à indignação nascida da constatação de que a pior inimiga da mulher pode ser a própria mulher. Nada que eu não soubesse da experiência do dia a dia, mas apresentado assim, num tom meloso que quase fazia ouvir risinhos delirantes, tornava-se verdadeiramente constrangedor. Ainda mais face à consciência do trabalho que ainda há a fazer para mudar o que, efetivamente, precisa de ser mudado para que mulheres e homens recebam, sem qualquer tipo de condescendência, o mesmo tratamento. Trata-se, com efeito, de um trabalho que não pode – nem deve – ser esvaziado com discussões maniqueísticas que desviem a atenção do ponto fulcral, ridicularizando-o ou empolando-o. A igualdade de género é uma necessidade que se impõe em todo o lado. Também na Madeira. Que o diga o professor que já lecionou em escolas básicas das zonas altas e afins e testemunhou diariamente a natureza dos insultos que crianças com menos de 13 anos proferem contra os seus pares femininos; que o diga o/a assistente social ou o/a agente da autoridade que já atuou em situações de miséria e/ou de violência doméstica; que o diga qualquer um de nós quando, numa qualquer situação, usou do género para decidir a equação sobre a mesa...

Por isso, artigos como o que li me arrepiam a alma, já que, tendo o condão de chegar a todos os níveis sociais, desperdiçam a oportunidade de mudar o que urge ser mudado num mundo de bitolas. Desengane-se quem acha que é coisa de somenos importância. A igualdade de género precisa-se e, consequentemente, o respeito que permita a qualquer mulher chegar aonde quiser porque é um ser humano e não porque é mulher. Com ou sem batom.