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China First

Antes da I Guerra Mundial, o exército americano era, em termos globais, pouco menos que insignificante

O livro “O domínio do Ocidente”, do professor e historiador inglês Ian Morris, tem uma introdução algo estranha. O Autor imagina a chegada de uma delegação chinesa ao rio Tamisa, em meados do século XIX, onde era aguardada pela rainha Vitória, o Príncipe Alberto, o duque de Wellington e metade da corte, ajoelhados e à chuva. O enviado era portador das condições da submissão do Reino Unido ao Celeste Império, e eram duras. Entre elas, a ida de Príncipe Alberto para Pequim, onde se integrou na corte local e de onde nunca mais voltaria.

Para além do humor tipicamente britânico, o que levou Ian Morris a conceber tal cenário? O que ele descreve é o simétrico do que sucedeu com a chegada e domínio dos ingleses na China, com episódios pouco dignificantes (à luz do presente), como as duas Guerras do Ópio, que seriam hoje o equivalente ao México invadir os Estados Unidos, a fim de os obrigar a importar livremente toda a cocaína do hemisfério ocidental.

O livro de Ian Morris estuda as razões do domínio do Ocidente sobre os outros povos, estabelecido entre os séculos XVI e XX, buscando explicações na História dos povos desde a Antiguidade.

No caso da China, o que não pode deixar de causar perplexidade é a constatação das condições relativas de desenvolvimento da China e da Europa nos séculos XV e XVI. Não restam muitas dúvidas em que a China, até ao século XV, tinha uma economia mais forte, maior poder militar, mais conhecimento científico e tecnológico, e estava melhor organizada politicamente.

No ensino secundário, aprende-se quando se deu a passagem da Idade Média para a Idade Moderna (marcada tradicionalmente pela queda de Constantinopla, em 1453, mas que Arnold Toynbee prefere datar de 1498, data da chegada de Vasco da Gama à Índia). Para essa transição, são apontadas quatro invenções que para isso concorreram: a pólvora, o papel, a imprensa e a bússola. As três primeiras ligadas ao Conhecimento e à sua difusão, a pólvora ao revolucionar da arte da guerra e a concorrer para a centralização do Poder e, consequentemente, para a criação dos Estados Modernos.

Quando os Portugueses começaram a descobrir a África, acabando por circundá-la, depararam com povos com organização social e tecnologia manifestamente inferior, o que lhes permitiu dominar os mercados locais. Com a chegada à Índia, a questão complicou-se, quando Vasco da Gama se deparou com uma civilização avançada e com circuitos comerciais com os quais não podia competir.

O conhecimento da China foi para os europeus ainda mais surpreendente, uma vez que se tratava de um gigantesco Estado centralizado, dotado de uma burocracia estruturada. Fernão Mendes Pinto, vindo de uma sociedade mal saída da Idade Média, admiraria o provimento dos mandarins por concurso, coisa impensável no seu País de origem.

Na primeira metade do século XV, numa das suas viagens, o almirante chinês Zheng He comandou uma grande esquadra através do Índico, até às costas de África; especula-se se teria mesmo circundado todo o continente africano, ou ido mais além. Ora, essa viagem a África é contemporânea da descoberta oficial da Madeira, primeiro passo da projeção portuguesa no desconhecido.

Ian Morris (mesmo sabendo que em História não há “ses”) interroga-se sobre qual teria sido o destino do Mundo se, em vez de navegar para Oeste, Zheng He tivesse navegado para Leste, antecipando em quase um século a viagem de Colombo. Não seria a primeira colonização asiática da América: a anterior teria ocorrido há cerca de 12.000 anos, através do Estreito de Bering, então a seco.

E podemos questionar: se a China dispunha da pólvora, do papel, da imprensa e da bússola, e tinha capacidade de navegação oceânica, porque não foi ela a dominar o Mundo?

Os factos são outros: precisamente nessa época, a China virou-se para si mesma. As viagens de Zheng não tiveram continuação, as fronteiras fecharam-se e os pontos de contacto com o exterior limitados. A consciência da superioridade teve um efeito perverso: reduzindo as ligações com o exterior, na mesma altura em que a Europa iniciava a sua projeção mundial, a China condenou-se à estagnação. Foi só no final do século XX que esta tendência se inverteu, e com resultados espetaculares a que hoje assistimos.

Ou seja, a “China First” deu maus resultados, e muitos dos seus desaires tiveram aí a sua origem.

Outro país asiático, o Japão, teve uma evolução algo semelhante, mas com outras origens. Após a introdução das armas de fogo pelos portugueses (e lá encontramos outra vez Fernão Mendes Pinto) o percurso foi parecido com o europeu: armando massas de camponeses com espingardas (tanegashima), foi possível abater os senhores feudais. Só que, depois de obtida a centralização do Poder, estabelecido pelo xogunato de Tokugawa, as armas foram recolhidas, sob o pretexto de só serviram agora contra um inimigo externo, e uma outra forma de feudalismo foi estabelecida, tendo durado até à intervenção da frota americana do almirante Perry, em 1854, quando os japoneses aceitaram o ultimato para a abertura dos seus portos aos estrangeiros.

Depressa recuperou o Japão do seu atraso, já que em 1905 derrotou a Rússia, uma das grandes potências da Europa. Tudo porque abandonara, embora forçado, o isolacionismo a que se votara. Houve um retrocesso ao “Japan First” entre as duas Guerras Mundiais, mas acabou mal. A partir daí, foi o que se viu...

O isolacionismo sempre foi uma das bandeiras do populismo – o que nada tem de insólito, já que assenta, não em argumentos racionais, mas em sentimentos obscuros e profundos. Por isso se tornou na palavra de ordem dos que proclamam o primado da intuição sobre a pesquisa, ou, se preferem, da inspiração sobre a transpiração.

Quando se vê a atual proliferação de movimentos populistas, um pouco por todo o Mundo, não há como lembrar o irreverente poema de Fernando Pessoa, “Liberdade”, que tantos engulhos deu ao Estado Novo. Escreveu ele, a dado passo:

Livros são papéis pintados com tinta.

Estudar é uma coisa em que está indistinta

A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Rematando o poema com o seguinte:

O mais do que isto

É Jesus Cristo,

Que não sabia nada de finanças

Nem consta que tivesse biblioteca...

Fantasias poéticas? Se atentarmos às declarações de alguns líderes, atacando o inimigo externo (real ou imaginado), o comércio livre, a comunicação social, o conhecimento científico e outras ameaças para eles tenebrosas, encontramos precisamente como suspeitos aquilo com que Pessoa ironizava: o estudo, as bibliotecas, a ditadura das finanças.

Os Estados Unidos da América tiveram vários períodos de isolacionismo. O próprio slogan “America for Americans” começou por ser a defesa do dos próprios EUA; mas acabou por abranger todo o hemisfério, o que não tem nada de isolacionismo.

Antes da I Guerra Mundial, o exército americano era, em termos globais, pouco menos que insignificante, e um quarto dos seus efetivos estava empenhado na defesa imediata dos seus portos. Mas, no último quartel do século XX, quando perguntei a um oficial americano como era a artilharia de costa dos EUA, ele olhou-me admirado, e respondeu “não temos”...

Após a I Guerra Mundial, os Estados Unidos voltaram ao isolacionismo; nem sequer assinaram o Tratado de Versailles, que pôs oficialmente fim à guerra (embora estivesse na origem de outra). Foi preciso toda a astúcia de Frank Delano Roosevelt para resolver dois grandes problemas da América: acabar com a Grande Depressão, por meios considerados não ortodoxos, e empenhar os EUA na defesa do Ocidente.

E assim garantiu, ainda que a título póstumo (morreu antes do fim da II Guerra Mundial), a consagração dos Estado Unidos da América como potência mundial.

Agora assistimos à consagração do “America First”, como programa político e estratégico. Se atendermos aos exemplos históricos, fortes dúvidas se levantam sobre a sua eficiência. Sobretudo quando os parceiros não estão disponíveis para colaborar...

Aprende-se na Física a Terceira Lei de Newton: a toda ação corresponde uma reação na mesma intensidade e direção, mas em sentidos opostos. O interessante é que esta regra se aplica também à política e às relações internacionais.

E se assistirmos ao confronto de “China First” contra “America First”, dada a situação da balança comercial e financeira dos EUA, o resultado será, no mínimo, duvidoso.