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Sobre o nascimento a bordo do Urânia II

Hoje estava confuso, não sabia o que devia escrever para ser publicado no DN de 23 de Fevereiro, porém à hora do almoço no norte da ilha, com o mar por perto, a conversa rumou ao passado e descobri esta pequena história. Corria o ano de 1952, o Navio Urânia II, carregado de emigrantes italianos, espanhóis e portugueses , famílias inteiras aos montinhos no porão, vai direitinho para La Guaira, Venezuela. Penosa viagem de 14 dias a partir de Lisboa. Gina levava no seu ventre um ser, na altura não havia ecografia, não se sabia o sexo antecipadamente ao parto. Devia nascer 2 meses mais tarde.

Sinto o corpo a tremer sempre que leio o poema «Os nascimentos» de Pablo Neruda : «Sabe-se apenas que nascemos / Sabe-se que na sala/ ou no bosque/ ou no palheiro do bairro piscatório/ou nos canaviais rumurejantes /há um estranho e profundo silêncio,/ um minuto solene de madeira/ e uma mulher vai parir».

Em frente de Trinidad e Tobago, a poucas horas de chegar a La Guaira, Gina sofre contrações. Chama o marido, que assistiu ao parto a tremer e a chorar e as suas lágrimas caiam sobre o rosto da mulher...enquanto o médico faz o parto.

«Sim, sabemos apenas que nascemos. /Mas da profunda agitação/ de não ser para existir, para ter mais,/ para ver, ter olhos,/para comer e chorar e despojar-se/ e amar, amar e sofrer, sofrer / daquela transição ou calafrio/ do conteúdo eléctrico que o corpo/ toma para si como se fosse uma taça viva,/ a mãe que ali fica com o seu sangue/ e a sua dilacerada plenitude/ com o seu fim e princípio, e a desordem/ que altera o pulso, o chão, os cobertores,/ até tudo se recolhe e mais/ um nó é dado com o frio da vida,/ nada ,não ficou nada na tua memória/ do mar bravio que esqueceu uma onda/ e derrubou da árvore uma maçã sombria»

Ao longo de um passeio domingueiro pela nossa Ilha vou ouvindo a história de Gina com 94 anos sobre a odisseia do parto da sua filha, que levou o nome do barco... e, relembrei Neruda « E de nascer tão pouco/ guardas a memória /ainda que importante e jovial /tenha sido a nossa vida» e « Nada tens mais recordações, que a tua vida».