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Quem são estes gajos?

Os coletes amarelos não têm identidade. São cavalgados pelas extremas-direita e esquerda, mas partem de um problema social profundo...

A História do protesto é, em boa parte dos capítulos, a História da França. Os franceses admiram o poder com a mesma força com que o desdenham - constroem palácios lindos sonhando com o dia de os rachar - e adoram por isso protestar.

Os protestos, de tão frequentes e variados, dão aos franceses o luxo de ir experimentado respostas. Robespierre recebia-os com o gume afiado da guilhotina. Napoleão, com a irrefutável eficácia do canhão - ambos confirmando, talvez, que é bom princípio não protestar contra quem protestou. Os protestantes não são mais clementes. Quando o povo pediu pão, Maria Antonieta mandou comer brioches, e cortaram-lhe a cabeça. Quando os coletes amarelos lhe pediram a cabeça, Macron aumentou-lhes o salário, e os coletes mandaram-no comer brioches. Foi um melhoramento, mas ténue.

Não é então de hoje que os franceses se julgam constituídos no direito ao impossível, e não será a primeira vez que a realidade lhes nega essa pretensão, e com violência proporcional ao absurdo da reivindicação.

Mas desta vez é diferente. Estes coletes não são os do costume. E também não são os oprimidos de facto: os imigrantes, alguns trabalhadores, as minorias étnicas, sexuais, religiosas. Este não é um movimento progressista, mas um movimento nostálgico. Os coletes amarelos não lamentam por uma justiça que demora, sofrem por uma justiça em extinção. São gente da periferia, os excluídos do algoritmo, os desbaratados da livre circulação de bens, pessoas, capitais. São pessoas que não vêm nas notícias. A deslocação da fábrica, a substituição do posto, a degradação do rendimento, são confecções lentas e corriqueiras, a que falta a dimensão universal e o cheirinho a prós e contras que faz o gosto, e o “gosto”, do Facebook. São pessoas que não ganham com o crescimento. Os Estados não dominam a roleta do rendimento do mundo globalizado. Em geral, há menos desigualdade, mas há mais desigualdade dentro de cada país, e mais haverá quanto mais a tecnologia fizer as vezes do trabalho, e quanto menos se tributar o capital produzido a partir dessa tecnologia.

Os coletes amarelos não têm identidade. São cavalgados pelas extremas-direita e esquerda, mas partem de um problema social profundo, sem o qual não havia cavalgadura, nem chico-espertice fascista e comunista, para ninguém.

Na dúvida, os coletes pedem tudo. Aumento das pensões e redução da idade da reforma. Acolhimento de imigrantes e resolução da causa das migrações. Aumento dos rendimentos, salários indexados à inflação, e contrato de trabalho para todos. E proibição de deslocalização da indústria, não vá alguém querer ganhar dinheiro. Parecem querer o mundo. Querem, na verdade, outro mundo. Macron, ao ceder, mostrou que não percebeu. Pensa que lida com os marginalizados da sociedade aberta, mas lida com os seus inimigos.Têm hoje outra força, e sobretudo outra credibilidade. Não há suborno que os convença, nem promessa que os acalme. Macron, curial, ensaiadíssimo, “jupiteriano” (um adjectivo irritante, forçado, contraproducente), de mãos sobre a marquesa com tinteiros de ouro, é o símbolo de uma elite política falhada. Que não explica, nem enfrenta, os desmandos das transformações tecnológicas ou da geopolítica. Que banaliza os limites da economia e, a cada eleição, promete o que não pode e retrai o que não deve. Que promove e aceita uma moral pública corrosiva, que censura o domínio do Ocidente enquanto reclama as condições que só esse domínio permitia.

O pacto social do pós-guerra é uma promessa - e um sucesso - de liberdade, paz, e progresso económico. Os políticos que acreditam na sociedade aberta têm de se defender, e escolher como se defendem: se com a verdade mais dura, se com a mentira mais atraente. Macron, que subiu salários com recurso a dívida pública, fez a sua escolha. Quem são estes gajos? Tudo menos o futuro.