Crónicas

Quando Roma paga a traidores

Roma paga a traidores quando esta Roma personifica todos aqueles que foram desprezados, afastados, atirados aos leões, enxovalhados e que, de um momento para outro, passam uma esponja no que aconteceu quando alguém lhes acena com uma cenoura

Quem nunca foi vítima ou perpetrador de uma traição que atire a primeira pedra. A dado momento das nossas vidas, já sofremos na pele os efeitos deste acto que nos deixa com um sentimento de desolação, muitas vezes espanto e até mesmo raiva. A confiança depositada em outrem esfuma-se quando nos apercebemos que aquela pessoa, consciente ou inconsciente, quebrou a confiança de que foi merecedora.

Na esfera pública e ao contrário do que apregoam as vozes populares, deparamo-nos com episódios frequentes de que Roma paga, de facto, a traidores.

Roma, esse império tão poderoso, sólido, que metia medo a qualquer opositor, até mesmo aos mais bravos, tinha uma guarda pretoriana implacável, uma máquina de guerra bem afinada e, nos tempos de mais aflição, socorria-se dos fracos, dos vendidos, dos que facilmente poderiam ser comprados para, numa habilidosa conspiração, alcançar os seus intentos.

Roma caiu, tal como caem todos os grandes impérios. As grandes potências acabam todas, mais cedo ou mais tarde, por sofrer os efeitos da vã tentativa da eternização do poder.

O domínio absoluto tanto seduz, como enlouquece. Com o passar dos anos, dá-se a passagem de testemunho àqueles que cresceram à sombra desse absolutismo, habituados ao conforto do facilitismo de que tudo se domina, tudo está controlado.

A tendência de inovar, afastar os velhos do anterior regime, os possíveis adversários internos e até mesmo desprezá-los, é uma das mais recorrentes tentações de quem chega para reinar.

É importante usar a tal linha que separa o passado do presente. Estará correcto?

Errado!

O nosso presente é feito pelas pequenas ou grandes coisas daquilo que ficou lá atrás. Para o bem ou para o mal, foram esses feitos que nos conduziram até aqui e que nos colocaram neste caminho do presente, com os olhos postos no futuro. Por isso não percebo como é que um candidato a presidente do Governo Regional, ainda por cima professor de História, é capaz de afirmar que “a Madeira não é passado, é futuro” e isto para não falar na tal amnésia que lhe deu quando foi prestar declarações sobre o trágico acidente do Monte. Como é que alguém, formado em História, com a obrigatoriedade de ter datas na cabeça, não se lembra que é esperado de quem lidera que conheça todas as competências, todos os departamentos, todos os dossiers, que vão desde a senhora da vassoura, até aos seus próprios vereadores?

Solidez, interesse, informação, sabedoria, consistência, honestidade intelectual. Liderança! Dá trabalho, eu sei, mas há que “comer mais umas saquinhas de milho”. Há coisas que me fazem confusão...

Mas voltando aos traidores dos valores que apregoam e que não cumprem, a sociedade civil, aquela que engrossa ano após ano as escandalosas listas da abstenção, está cansada de ser regida por gente que continua a achar que deves “fazer o que eu digo e não o que eu faço”.

Esta desmoralização geral facilmente comprovada nas listas compostas por aqueles que nem se incomodam em ir às urnas, está obviamente relacionada com a falta de representantes exemplares. Como explicar a um pobre coitado que tem de desembolsar centenas de euros para pagar uma viagem que há, por exemplo, deputados que recebem deslocações que nunca foram feitas? Estas e outras regalias que aos olhos do comum dos mortais são uma afronta e que faz com que se meta no mesmo saco todos aqueles que fazem parte da classe política. Certo?

Errado!

Há gente séria nos partidos. Nem todos ficaram ofuscados pelo poder ou pelas luzes da ribalta. Ainda há gente sem medo de falar na Pátria, em vez de alinhar no politicamente correto de substituir essa palavra por uma outra menos... nacionalista. Mas será que esses têm as forças necessárias para remar contra esta maré?

É aqui que entram as habilidades para dar outra ideia das maçãs podres que tentam estragar todas as outras. Aqui, são os próprios partidos que, numa tentativa de preservar a imagem de falsas virgens imaculadas, protegem, ocultam, desculpam, mantêm e fecham os olhos aos perigos que essas maçãs representam. São os partidos? Não. São os seus dirigentes, porque os partidos são muito superiores às pessoas que em seu nome lideram as suas estruturas. As ideologias continuam intactas, apesar de em muitos casos serem completamente ignoradas e desconhecidas internamente.

É aqui que Roma paga a traidores quando decide mantê-los, em vez de os afastar para o bem de todos. Para o bem comum. Para o bem das linhas mestras que compõem a sua ideologia e para o bem da credibilidade que é necessária aos olhos dos votantes.

Continuar a fomentar a política da avestruz com a cabeça enfiada na areia não é, nos tempos que correm, a solução mais indicada, quando temos uma sociedade cansada do “mais do mesmo”, sentimento que conduz as organizações partidárias ao descrédito.

Roma paga a traidores quando esta Roma personifica todos aqueles que foram desprezados, afastados, atirados aos leões, enxovalhados e que, de um momento para outro, passam uma esponja no que aconteceu quando alguém lhes acena com uma cenoura.

Se aqueles que nos traem merecem perdão? Depende da traição cometida, depende da humilhação a que fomos sujeitos, depende da nossa consciência e dos nossos valores. Há quem consiga, por exemplo, ser destratada na praça pública, levar com um atestado de incompetência e passados uns meses fazer parte e ajudar uma equipa liderada pela pessoa que lhe fez mal. Há estômagos de vários tamanhos, tal como as consciências...

Roma paga a traidores quando, em troca de prateleiras douradas e outras benesses, os “repescados” não hesitam em trair o seu amor próprio, ideais e convicções, por um qualquer Eldorado que lhes volte a dar poder, status e presença. E como lidam essas pessoas com a sua própria consciência?