Bicho pau
A minha mãe estava lá, para ir buscar os livros, para o pequeno almoço com sumo de laranja, até para sonhar comigo, que eu ia ter tudo depois
Passamos mais tempo juntos, quase sempre nos bancos de espera do hospital ou no quintal, a falar disto e daquilo, assuntos corriqueiros, histórias antigas de quando o meu pai ainda era novo e eu estudava no secundário, de quando ainda estávamos todos, antes da água do ribeiro ter levado o portão. Lembro-me bem, faz agora 25 anos e foi a primeira aluvião que vi arrastar tudo pela frente, até o nosso portão e a roseira vermelha. Depois ficou lá um buraco e a nossa vida não voltou a ser a mesma.
O meu pai arranjou uma porta nova, daquelas de garagem, pintou com sub-capa vermelha para não criar ferrugem e cimentou a entrada e as roseiras que resistiram à noite de temporal floriram na primavera seguinte, mas por essa altura o estrago do ribeiro era a mais pequena das preocupações. Eu estava doente e a família inteira rodopiava por ali. A tia Conceição vinha mais cedo do hotel para comprar morangos e ananás, que a fruta só fazia bem e a Raquel ficava a fazer companhia quando tinha folga no jornal.
Ou íamos ao cinema que, nesses anos, o Teatro Municipal organizava uma mostra de filmes de qualidade e não podíamos perder um. Até me lembro do vestido preto com flores roxas e o boné de veludo que usei quase como uma declaração de guerra a todas as ideias feitas sobre estar doente e fazer quimioterapia. E eu estava assustada, dava-me medo sofrer, não ser capaz de me manter digna. A doença, às vezes, rouba-nos a dignidade. Por isso não perdia um filme e lia como se não houvesse amanhã os livros da lista que a minha mãe ia buscar à Livraria Esperança. Tudo era combate, da roupa que vestia ao calor do abraço da minha mãe.
A minha mãe estava lá, para ir buscar os livros, para o pequeno almoço com sumo de laranja, até para sonhar comigo, que eu ia ter tudo depois. As viagens, o amor, a felicidade, o que naquele verão parecia existir apenas para lá do nosso portão novo. Em 1994 aconteceu muita coisa, mas eu estava em casa e ouvia sem cansar o “Everybody Hurts”, que me parecia ter sido feita só para mim, para contar o quanto me doíam os braços, de como era injusto ter 23 anos e a angústia de um velho. Lembro-me de me agarrar ao silêncio, à calma das tardes do Laranjal, de me deixar embalar com os lanches da minha tia Alice e com os chocolates que minha tia Teresa tirava da gaveta do móvel, tinha-os guardado para mim.
Às vezes a minha prima Ana levava-me a tomar café e o meu pai, que chorava às escondidas, vinha mostrar-me os pintainhos novos, os coelhos pequeninos, fez como sabia e podia, mais ou menos como a porta nova de garagem, pintada com sub-capa vermelha, assim para o empenado e com as soldaduras à mostra. O meu pai é assim e tenho pensado muito nisso agora que passamos mais tempo juntos, tenho pensado naquele ano em que primeiro veio uma aluvião, arrancou o portão e depois chegou a doença, deixando um buraco e as nossas vidas viradas ao contrário. A sensação é mais ou menos a mesma.
Como lhe dá arrepios quando chove demais, também lhe mete medo ver-me cansada ou triste, que às vezes não se consegue evitar. E faz o que sabe para arrancar-me um sorriso como há umas semanas, quando guardou com todo o carinho o bicho pau que apareceu no quintal. Ele sabia que eu ia gostar, que ia tirar fotografias e contar a toda a gente como se fosse o presente mais importante, assim de muito valor