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“Unicórnio” de Júlio Pomar dita destino de café centenário nas Caldas da Rainha

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Um painel de Júlio Pomar está há mais de meio século ligado ao destino do Café Central, nas Caldas da Rainha, onde o “Unicórnio” cravado na parede em tinta dourada ajudou a fazer e desfazer negócios.

“Unicórnio”, um painel em baixo relevo, pintado por Júlio Pomar (10 de janeiro de 1926 - 22 de maio de 2018) em 1955, é hoje descrito na carta do Café Central, nas Caldas da Rainha, como “um dos elementos emblemáticos” do café construído nos anos 30.

A referência reflecte “o respeito ao peso da história por aqui passou”, pode ler-se, em português e inglês, na ementa do café comprado por Luísa Pião em 1995, com o grande painel azul, com um unicórnio cravado a dourado a mostrar-se decisivo para o negócio.

Recém-chegados da Suíça dispostos a abrir um negócio, Luísa e o marido descobriram o Central durante uma visita às Caldas da Rainha.

“O Café estava degradado, os clientes muito idosos, os empregados já muito sem ‘pica, todos velhotes, mas achámos o quadro tão bonito que decidimos que tínhamos que comprar aquele espaço”, lembra a actual proprietária.

Acordado o preço com os então donos, a família Maldonado Freitas, “sem nunca ter sido mencionado o painel [pintado directamente na parede], o negócio esteve quase a ser desfeito, ainda antes de ser concretizado.

“Quando viemos pagar o trespasse o anterior dono disse que ia retirar o painel e o meu marido respondeu que, então, anulávamos o negócio, porque era pela pintura que comprávamos o café”, contou Luísa Pião à Lusa.

A família acedeu então em deixar o painel e com ele a história que unia os Maldonado a Júlio Pomar.

O pintor e Custódio Maldonado Fritas tinham sido presos políticos, em Caxias, onde nasceu a amizade que levou o artista a pintar os unicórnios que marcariam a decoração do café cuja gerência a família de históricos socialistas assumiu em 1955.

A pintura figurativa, a que o autor nunca atribuiu um significado, foi cenário para muitas conversas e tertúlias, durante décadas, levaram ao Central, antes e depois do 25 de abril, muitos anónimos conotados com os partidos de esquerda.

Em maio de 1996, quando Luísa abriu o estabelecimento remodelado, o “Unicórnio” de Pomar lá estava, restaurado ao pormenor pela Fundação Espírito Santo.

“Ligamos ao Júlio Pomar, porque não encontrávamos este tom de dourado e ele disse-nos o número da cor, que ele tinha comprado na Av. de Madrid, na Casa Varela”, recordou Luísa satisfeita com rigor do restauro que Pomar nunca chegou a ver.

Mas o painel, e a história do café centenário, voltaram a ditar a história do Central quando, em 2001, Luísa quis alugar o espaço a uma óptica.

A condição prévia do negócio foi que “o painel fosse mantido exactamente como está” e os pretendentes a rendeiros “aceitaram”. Já a população das Caldas da Rainha não esteve pelos ajustes e iniciou movimentos de contestação que acabaram por levar a autarquia a não autorizar que o Central deixasse de funcionar como café.

A óptica desistiu do negócio, o café esteve fechado cinco anos. Pelo meio, Luísa acedeu uma vez mais a alugar o espaço, dessa vez a um comerciante de artigos chineses. Mas a população e autarquia opuseram-se ao negócio, mesmo com a garantia de que nem o painel nem a arquitectura do espaço seriam alterados.

E em 2006 Luísa voltou a reabrir o Café Central e a ostentar o painel que “é também um património da cidade”, que espera passar às filhas quando chegar à idade da reforma.

Até lá, o emblemático painel, continuará a levar ao Café Central clientes de sempre, como o advogado João Pimentel, que por ali para desde 1958, quando deixou Coimbra pelas Caldas da Rainha.

Entre leituras o advogado de 88 anos, admirador da obra de Pomar, estudioso das suas várias fases, congemina significados para o “Unicórnio”.

“Na minha leitura retrata o adultério, um macho, uma fêmea, e um unicórnio mais pequeno, resultante da traição”, afirma, de olhos postos no painel que “já era valiosíssimo, mas agora [após a morte do autor] é ainda mais”.

Certo é que o painel atrai ao café “pessoas que vêm de propósito para o fotografar, tirar fotos com ele ao fundo ou, simplesmente, entram e pedem para o ver”, diz Luísa.

E, a cumprir-se a vontade de Luísa Pião, é igualmente certo que, “a pintura daqui nunca vai sair” por mais que vão sendo feitas remodelações para adaptar o negócio à era moderna.