Crónicas

Sexo na curva

Nas quatro ‘crónicas de outros Agostos’, surgem estórias de amor

Naquela curva discutia-se o mundo; disputava-se a Guerra Fria; o comunismo defrontava a liberdade; o capitalismo competia com o marxismo, o imperialismo confrontava-se com a descolonização; o ódio substituía o amor. Naquela curva jogava-se o futuro da Madeira e do planeta. De um lado estavam os azuis e amarelos da direita e do outro os vermelhos da União do Povo da Madeira. Naquele verão quente de 1975, quase todas as noites, o pessoal jovem pintava a bandeira da Flama na curva larga da Conde Carvalhal e horas depois lá subiam os esquerdas para borrar a pintura. Houve madrugadas de pancadaria e violência, apesar de os adversários se conhecerem porque frequentavam as mesmas escolas, cafés e discotecas. A revolução dividiu a sociedade, as famílias, os vizinhos e os amigos. Marta e Tiago eram dos poucos que não se conheciam. Os seus olhares cruzaram-se, pela primeira vez e durante muitas noites, naquela curva da Conde Carvalhal. Ao contrário de outros, arremessavam pedras e paus um contra o outro, mas não havia nem raiva nem ódio. Os seus corpos pareciam querer lutar noite dentro, noutro lugar e sem ideologias pelo meio.

Marta era uma revolucionária saída de uma família rica que tinha feito a primária num colégio de freiras e que substituíra os vestidos da Vogue, cortados a preceito pela costureira e os sapatos da moda escolhidos pela mãe, por uma camisa xadrez masculina, umas calças de ganga coçadas e umas sandálias de couro. Andava na frente das manifestações, das greves, das ocupações selvagens e distribuía panfletos como antes, em criança, tinha o gosto de entregar santinhos à saída da Missa. Apesar da mudança conservava uns olhos de um verde invulgar e uns cabelos desalinhados que lhe davam um ar sensual e selvagem. Tiago provinha da classe média, era bom aluno e manifestava-se contra o que se se estava a passar no Liceu com greves e saneamentos de professores e por isso alinhava à direita, acreditando que a Madeira podia ser um país. Não mudou de visual, adorava as Levis 511 e os polos da Lacoste e acompanhava as tendências internacionais através da Playboy brasileira que comprava às escondidas na Tabacaria do Jardim. As raparigas do Liceu cobiçavam-no pelo bom aspeto e pelo verbo fácil.

Numa daquelas noites loucas de agosto, em que uns pintavam e outros destruíam, Tiago não resistiu a uma pancada de um bastão e caiu no ladrilhado com o sobrolho aberto e o sangue a manchar o calcário. Marta que liderava os opositores reagiu, intempestivamente, e lançou-se ao chão para ajudar Tiago a levantar-se e ambos saíram da contenda a caminho de sua casa a poucos metros da luta que lá continuou, tudo por uma bandeira numa parede e por uma causa no coração.

Marta morava num palacete romântico com uma casinha de prazeres adornada por buganvílias a cair sobre a rua. Foi aí, nesse seu centro de operações revolucionárias, que limpou o sangue, de que ela tinha horror, da cara de Tiago e viu que afinal era uma pequena ferida que um penso rápido havia de sarar. Ao carinho e coragem dela, respondeu Tiago com um beijo de agradecimento que rapidamente se transformou numa ardente pressão labial, com os corpos a se envolveram numa luta que se prolongou noite fora, mais longa que aquela que se travava na curva. Marta parecia ter todas as revoluções no corpo e Tiago respondia a cada desejo que emergia do soalho de casquinha com cocktails Molotov que a deixavam sem resposta. Ele tinha a escola de quem de vez em quando frequentava as casas das meninas e dormia com mulheres mais velhas e experientes. A luta parecia interminável e implacável. Ali, na parede, Marx Engels e Lenine, testemunhavam o ato, chocados com a violência e o ardor de uma noite de amor entre uma “revolucionária e um fascista”.

Estaline, colocado num poster a um canto, só lhe apetecia mandar os dois fazer sexo para a Sibéria e, apenas Che, o Guevara, um latino, que emergira como herói romântico cubano, ria e percebia como aquela era a verdadeira revolução.

Os dias foram passando, o processo revolucionário perdeu o seu curso e Marta e Tiago foram estudar para a capital. As bandeiras ficaram para trás. Apesar de ambos frequentarem a boémia noturna do Bairro Alto e da 24 de julho, quis o destino que nunca se tenham encontrado fora da ilha. Marta formou-se em Sociologia e constituiu família numerosa com um abastado cirurgião da praça funchalense. Tiago é um advogado reconhecido, mas com vários casamentos e relações falhadas. Às vezes cruzam-se na Cidade, trocam olhares e sorrisos, lembram-se daquela noite revolucionária e apetece-lhes repeti-la. Mas os dois sabem que as ideologias já morreram...