Crónicas

Romper o ciclo

Assistimos aos regressos daqueles que, a bem dizer, nunca foram embora. Os mesmos que deixaram a sua marca e que continuaram como sombras atentas ao trabalho dos sucessores. Temos os tais sucessores a viver à sombra dos fantasmas do passado, cometendo os mesmos erros, pese embora a ardilosa camuflagem que se apresenta diferente. Mais moderna, mais... renovadinha

Porque é tão difícil romper um ciclo? Talvez mais até do que cortar o cordão umbilical e largar para o mundo uma criança que, com aquele gesto, vai tornar-se num cidadão com toda a sua individualidade.

Romper o ciclo exige prudência, coragem e abertura para abraçar novas áreas, novas ideias, novas pessoas e novos desafios. Os gurus da moda insistem na expressão que é preciso pensar fora da caixa, expandir horizontes e partir para o desconhecido, como se bastasse um passe de mágica para fazer acontecer, tendo em conta um mundo que tem vindo a perder a sua magia e que está definitivamente condenado às burocracias morosas e desanimadoras.

- Isto é tudo muito bonito na teoria, mas vamos com calma. Na prática, as coisas são diferentes...

O alerta veio de alguém que aprendeu com a prudência. Não vale a pena fazer promessas doidas, abrir o peito, estalar os dedos e já está! Também não vale a pena desistir dos sonhos que movem montanhas e que dão um sentido à nossa vida. O truque está em encontrar o equilíbrio entre o desejado e o que podemos alcançar com as nossas capacidades. Pelo caminho das ambições desmesuradas, foram muitos os que caíram exaustos e cambados...

- Só dando com a cabeça na parede é que aprendem. A velha receita nunca falha!

Mas o certo é que há pessoas que dão a ideia de que gostam mesmo de andar às cabeçadas. Teimam em velhos hábitos, fomentam truques que já não surpreendem, cultivam discursos que não mudam e opõem-se de forma assanhada às mudanças que, a pouco e pouco, vão sendo introduzidas na forma de pensar, na maneira de agir, no saber estar e na capacidade de interpretar. Os que pensam de forma diferente são, regra geral, colocados naquela lista negra de pessoas a “abater”.

Ao longo dos anos, fomos estrategicamente “educados” a ver inimizades em tudo aquilo que é diferente do pensamento único e muitos, com a mania de que já sabem tudo, deixaram de questionar, duvidar, confrontar, aprender!

Os ciclos renovam-se com as mesmas pessoas de sempre? Teremos a capacidade para nos reinventar? É desta renovação que precisamos enquanto sociedade ávida por um poder político honesto e competente? Ou precisamos urgentemente de sangue novo na Nação? Gente feita de outra massa, porque esta já mostrou o que vale e os resultados estão bem à vista...

Assistimos aos regressos daqueles que, a bem dizer, nunca foram embora. Os mesmos que deixaram a sua marca e que continuaram como sombras atentas ao trabalho dos sucessores. Temos os tais sucessores a viver à sombra dos fantasmas do passado, cometendo os mesmos erros, pese embora a ardilosa camuflagem que se apresenta diferente. Mais moderna, mais... renovadinha.

Nada pode ser bom ou mau sem ser por comparação. É esta a habilidade que nos mostra o que consideramos positivo em detrimento daquilo que não queremos. Passamos a vida a comparar, a tentar medir personalidades, atitudes, decisões. Durante este processo, a própria memória costuma pregar as suas partidas, o que nos faz dourar a pílula em relação a alguns ciclos que foram maus, mas quando comparados com os atuais, afinal até eram bem melhores do que julgávamos...

E esta falta de rigor conduz-nos à aceitação resignada de que temos o que merecemos. A ausência da exigência leva-nos à nefasta pacatez ilusoriamente confortável de ficarmos dentro da tal caixa, desprezando tudo o que acontece fora desse ciclo, resistindo e lutando contra as inovações que são vistas como ameaças a aniquilar.

Nesta demanda de evitar que se percam os quintalinhos, há que alimentar muito bem os cães de caça que não hesitam em ladrar raivosamente, desempenhando na perfeição a única missão que lhes foi confiada: assustar, impingir e mostrar a alegada cobardia da vítima.

«O desprezo pelas ideias aumenta em cada dia. Vivemos todos ao acaso. Perfeita, absoluta indiferença de cima a baixo! Todo o viver espiritual, intelectual, parado. O tédio invadiu as almas». A frase é de Eça que, em junho de 1871, caracterizou um país que «perdeu a inteligência e a consciência moral», num cenário de um «salve-se quem puder».