Crónicas

Quando se gosta

Quando cheguei, aí pelo início dos anos 90, os jornais eram um lugar romântico, com meia dúzia de computadores, secretárias entulhadas de papéis e cinzeiros cheios, que fumar ajudava a meter as ideias em ordem.

Quando cheguei, aí pelo início dos anos 90, os jornais eram um lugar romântico, com meia dúzia de computadores, secretárias entulhadas de papéis e cinzeiros cheios, que fumar ajudava a meter as ideias em ordem. Ainda se ia tomar um copo ao fim da noite depois da malta da paginação gritar, por entre dois ou três palavrões, que a edição do dia seguinte estava fechada e pronta para “embrulhar espada no mercado”.

E as redacções eram habitadas por homens de meia idade, um tanto cínicos, de humor mordaz, mais ou menos indiferentes aos estagiários que começavam a chegar das universidades. Acho que lhes dava no mesmo, não distinguiam quem tinha curso de que quem não tinha, queriam notícias, textos escritos em português de jeito, sem remoques ou considerações, pois ninguém queria saber da opinião de fedelhos que não sabiam os nomes dos deputados e dos membros do governo.

Os jornalistas da velha guarda não facilitavam, nem poupavam nos berros, nos palavrões e na falta de paciência, que todos os dias havia jornal e não estavam para aturar as lágrimas das estagiárias, nem queriam saber se o gravador tinha encravado. Lembro-me de que ficávamos sempre 15 dias à experiência e lembro-me dos avisos, aquilo talvez não fosse vida para mim, eu tinha um curso, disseram para tentar a sorte noutro lugar, teria sossego e melhor ordenado. Eu fiquei, faz agora 25 anos que decidi seguir este caminho e ainda aqui ando, mas isto está mudado.

A velha guarda reformou-se, alguns sucumbiram ao copo ao fim da noite e aos cigarros para meter as ideias em ordem e o que mais se destaca nas redacções é a tecnologia, os écrãns ligados, os computadores, a pressa de actualizar a informação na net, o vídeo e as fotografias, as notificações para os telemóveis e as redes sociais, o medo de perder a corrida e o julgamento instantâneo de tudo o que é feito. A velha guarda agora sou eu e os outros que entraram comigo e cobriram as inaugurações, os comícios à porta das igrejas, as campanhas eleitorais e contaram a história quotidiana dos madeirenses nestes anos.

E fizemos tudo com pés na lama das aluviões, ouvimos velhinhos esquecidos e sentados na beira estrada numa ilha fora da vista, denunciámos abusos e houve relatos de pessoas felizes. Também fomos avaliados e julgados. Dar a cara por cada texto, por cada notícia que se assina, por cada comentário e opinião exige nervos de aço, sobretudo quando se faz à moda antiga, sem pseudónimos ou perfis falsos ou atrás da cortina do anonimato. O que fizemos até aqui está nos arquivos, há-de ajudar os historiadores do futuro a perceber a forma como vivemos estes anos no virar do século XX para o século XXI.

Isto está mudado e um jornalista sabe que as notícias de ontem não vendem os jornais de amanhã, conta é que vamos fazer daqui em diante num mundo menos romântico, de salários baixos e menos prestígio. Às vezes, quando vem o desânimo, penso naqueles primeiros anos, quando comecei, com meia dúzia de computadores, secretárias entulhadas de papel e cinzeiros cheios. Pagavam mal, mas eu escolhi ficar, acho que é assim quando se gosta.