Crónicas

Os bandos

Os bandos não gostam de ser desafiados, muito menos pelos da casa. E mesmo que exibam a bandeira da Paz, Pão, Povo e Liberdade, mesmo que enverguem as vestes frescas da mudança e apregoem confiança, há uma rígida disciplina a cumprir a todo o custo

Desde o início dos tempos que andar em bando era sinónimo de proteção, eficácia na caça, na defesa dos seus domínios, procriar e apoiar-se assim num núcleo de apoiantes e defensores minimamente eficaz. Havia que proteger a caverna dos outros mal-amanhados que cobiçavam um melhor espaço, melhores víveres e melhores condições.

O ser humano sempre procurou integrar-se e ser integrado no seu bando, na sua legião, no seu espaço. Os tempos evoluíram, a espécie também, mas o sentimento de cobiça e de querer, a todo o custo, tomar conta ou destruir as “cavernas” dos outros, permanece imutável.

Para quem não tem a capacidade ou não gosta de estar só – para muitos é um sacrifício conviver consigo próprio – integrar-se num bando, daqueles da sociedade moderna, é o melhor que pode acontecer. O reconhecimento dos pares faz com que o indivíduo se sinta, tal como no tempo das cavernas, protegido, amparado, reconhecido e até mesmo adulado.

Andar em bandos hoje em dia, implica ter que militar num determinado partido, professar uma certa fé, frequentar os mesmos sítios que os outros elementos, gritar pelo mesmo clube, dar likes nos posts dos membros do bando, mesmo que não saibam o que lá está escrito.

E ao contrário do que se possa pensar, este andar em bando tem muito a ver com a sobrevivência que tanto caracterizou os primórdios dos tempos. Pessoas que não sabem estar sós – o que implica uma profunda viagem ao seu interior e descobrir coisas interessantes para fazer, do tipo... ler, estudar, adquirir conhecimento! – imploram por juntar-se aos bandos que, de forma mediática, demonstram toda a sua força e pujança contra as adversidades do dia a dia, muitas delas propositadamente inventadas. Assim, têm o seu lugarzinho ao sol no meio do bando e se este assim o permitir. Há deles que fazem tudo pelo amor à camisola. Até mesmo insultar gratuitamente as cavernas adversárias, criar falsos cumprimentos de promessas para convencer e fortalecer a sua posição perante uma plateia cada vez mais apática, iludida e também ela desejosa de, um dia, ter a sorte de fazer parte dos grandes do bando composto por aquele núcleo duro liderado por um indivíduo que tem outros 20 ou 30 a cumprir as suas ordens e estes, por seu turno, têm uns 100 ou 200 que se encarregam de fazer aplicar os mandamentos. Creio que deve ser o único esquema de pirâmide que realmente funciona, é eficaz e também dá muito dinheiro aos de cima...

Na verdade, deixamos de ser caçadores/recolectores para passarmos a vestir o papel de exímios predadores que aumentam o grau de perigo quando se reúnem em bandos intolerantes, liderados, como ditam as modas da atualidade, por metrossexuais carismáticos com muito paleio e pouca consistência.

O perigo dos bandos reside na intolerância perante as cavernas dos outros e perante aqueles que, dentro do seu próprio grupo, decidem fazer perguntas e questionar decisões. Não é admissível, na esmagadora maioria dos bandos que conheço, haver margem para que surjam as dúvidas, pois estas são verdadeiras ameaças que podem vir a corroer as mordaças e desfazer o encantamento.

No livro “Desobediência Civil”, o destemido Henry David Thoreau confessa: «o que desejo imediatamente é um governo melhor e não o fim do governo. Se cada homem expressar o tipo de governo capaz de ganhar o seu respeito, estaremos mais próximos de conseguir formá-lo».

Uma frase que explica, principalmente aos bandos, que só o simples facto de se perguntar, questionar, sugerir, apontar ou criticar, não quer dizer que estejamos contra eles, mas sim que estamos a contribuir para que sejam muito melhores do que aquilo que são.

Os bandos não gostam de ser desafiados, muito menos pelos da casa. E mesmo que exibam a bandeira da Paz, Pão, Povo e Liberdade, mesmo que enverguem as vestes frescas da mudança e apregoem confiança, há uma rígida disciplina a cumprir a todo o custo. A verdade dos outros deixou de interessar há muito. O que conta mesmo é a obstinação de quem vive no topo da pirâmide, nem que para isso seja necessário mutilar as vontades próprias dos indivíduos, moldar personalidades e criar mundos virtuais, onde impera, a todo o custo, a força do bando, em detrimento do poder individual. «A política apressa-se a apagar as luzes para que todos estes gatos sejam pardos», escreve José Ortega y Gasset, na “A Rebelião das Massas”.

Desgraçadamente ou não, perante o estado atual dos bandos, há cada vez mais ilhas dentro da ilha. Uns são ilhas perdidas no meio de um oceano cheio de predadores, intolerância, de pessoas que não têm zelo, nem brio naquilo que fazem e que parece que só existem para infernizar a vida dos outros. Há deles ainda que são ilhas distintas, pacíficas, no limbo da desertificação e do paraíso. E há outros ainda que se estão nas tintas para isto tudo, correspondendo à velha máxima do “mais vale só que mal-acompanhado”.