Crónicas

O xilófago da Sé (1)

Tentaram assassinar-me com petróleo e com os mais variados químicos, mas sobrevivi e cá estou para contar algumas estórias.

Já me chamaram tantos nomes que já nem sei como me chamo: caruncho, formiga branca, térmita, xilófago, eu sei lá o que já me praguejaram, apenas e só porque gosto de madeira. Fiquemos pelo último, até porque permite que, como é moda nos tempos que correm, me possam apelidar, carinhosamente, de xiló. É bonito e passa bem em setores da nossa sociedade, da nossa e desta Lisboa para onde vim no último mês. Viemos assinalar os 600 anos da descoberta das nossas ilhas, ou melhor vim a parasitar, como é próprio da minha existência, uma moldura de uma pintura que a minha família anda a roer há séculos na Sé. Tentaram assassinar-me com petróleo e com os mais variados químicos, mas sobrevivi e cá estou para contar algumas estórias. Nasci na Catedral e por lá cresci e me fiz xilófago, comendo a madeira que os artistas esculpiram. Já estive no retábulo onde os meus antepassados viveram depois de uma viagem tormentosa ente o Reino e o Funchal, depois emigrei para Goa onde um Bispo me benzeu sem saber que eu lá estava encrustado numa cruz de pau santo e, finalmente, fui resgatado no interior de uma Sagrada Família. Vivo agora no cedro do teto mudéjar da Sé do Funchal, uma mistura de arte cristã e islâmica, sem perder uma oportunidade de dar umas voltas por essa ilha e mundo fora. Cheguei a acasalar com uma térmita no teto, também mudéjar da biblioteca da antiga Alfândega, hoje Parlamento, mas aquilo era muita confusão para a minha cabeça e vim embora. No entanto, sempre que anunciam a saída de alguma peça da Catedral para uma exposição, lá desço dos céus e penetro na imagem ou nas molduras das telas e aí vou rumo ao desconhecido. Nos últimos tempos, estive numa coisa que chamam de Arte Antiga, na capital, no entanto, regresso a tempo da Festa. Não me pagaram subsídio de mobilidade, mas enquanto residente na madeira, vou bater o pé ou será o dente? Seja como for tenho os meus direitos e deles não abdico, nem que tenha que ir a Belém, sim porque fiquei intimo do presidente dos afetos quando um dia destes aqui veio ao Museu e se encostou ao Retábulo dos Reis Magos para uma selfie. Eu estava no ombro do Melchior a almoçar e fiquei na foto.

Ando pela Sé há muitos anos e sei o que é a vida. Tivemos a Madeira Velha, depois a Madeira Nova e agora temos a Madeira Renovada, e por todas andei e comi com vontade, a bem dizer. Se vocês soubessem o que tenho ouvido quando venho jantar vinhático no confessionário...e o que tenho visto nestes bancos...

Vida dura a minha, sobretudo, quando, periodicamente, tentam desinfetar a Catedral e matar a minha raça, nós que levámos a fé por essas terras fora, que resistimos aos ataques dos corsários, que ajudámos na luta contra os comunistas e que por aqui andamos a dar trabalho aos artistas, aos restauradores e a outros doutores da cultura. O que seria da vida de muitos sem a nossa vida?

Gosto desta lide na Sé, embora de vez em quando aprecio que nos exportem para umas mostras fora da ilha, o que permite conviver com Xilós de outras paragens, sim porque um xilófago não é de ferro, ele é mais madeira. Mas o que eu gosto mesmo é da Festa. Cá para a gente, adoro aquela placa central e há noites em que me consigo escapulir por entre os ferrolhos destas pesadas portas e também provo a minha ponchinha nas gotas deixadas cair no tratoário pelos mais alegrotes. O problema é quando regresso e me engano nas curvas. Já me aconteceu despertar São Miguel Arcanjo, incomodar o sono de São João, tropeçar em Santo Agostinho e acabar na sacristia no vinho das celebrações. Para regressar ao meu poiso só na manhã seguinte, mas mesmo de ressaca não resisto à Missa do Parto. Também gozo a noite do Mercado, mas já não é a mesma coisa de outros tempos. Adoro a Festa na Sé, sobretudo daquele Presépio na Capela do Senhor Jesus com aqueles pesados troncos que fazem as minhas delícias gastronómicas e da minha família. Sim porque também temos direito a consoada e a carne de vinha de alhos não é, propriamente, o nosso prato predileto. Mas o melhor é mesmo a noite de Natal. Na primeira vez, era eu um imberbe sem consciência, vi o Menino nascer e fixei-o com desconfiança por estar a invadir os meus domínios. Ele olhou-me com toda a ternura e compaixão e proclamou: “Eu sou de carne e osso e vim Salvar o Mundo”. A partir daí todos os anos, em dezembro no dia 25, espero-o com ansiedade e amor e digo-lhe: “Glória In Excelsis Deo”.