Crónicas

O vazio que sobra

O vazio começa agora. Não é o meu vazio, não é o meu luto, nem aquele que o governo decretou

Foi uma semana triste, daquelas em que não se sabe bem o que se pode escrever numa crónica onde se fala de laços, de família, da mãe e do pai, do cão e dos gatos, da infância, desse país de onde viemos todos. Eu tinha pensado falar do Monte e da minha mãe, que gostava de jardins e todos os anos me levava pela mão para a ver o túmulo do imperador que já era santo mesmo antes do Papa dizer. Lembro-me do relógio de fingir que me comprou uma vez no 15 de Agosto, ali mesmo, no Largo da Fonte, e lembro-me dos dedos colados por causa do açúcar dos rebuçados.

E havia gente pelos trilhos, mulheres de velas nas mãos e joelhos a sangrar a subir os degraus da igreja, a minha mãe dizia que era a fé, era o sofrimento, mas a mim dava medo perceber a dor dos outros. Eu depois corria para o carro do meu tio Humberto e colava o nariz ao vidro para ver a vistas do passeio de meia volta à ilha e esquecer tudo, o túmulo do imperador santo e os devotos, o cheiro a cera, as flores da igreja, a festa. Eu tinha pensado falar do Monte para onde corri este 15 de Agosto, estrada acima porque as notícias falavam de uma desgraça, de uma tragédia.

As pessoas desciam desorientadas e, lá no largo, estava o pior da história, os mortos, aquele número absurdo de vidas roubadas, de planos e sonhos desfeitos. A voz tremeu-me, aquilo era terrível e continuaria a sê-lo depois, naquele depois que começa quando as câmaras de televisão desligam e correm noutra direcção. Quando os jornalistas desmobilizam, sobra o vazio, a solidão dos sobreviventes. Não há ninguém para ouvir a dor, nem a quem contar o horror do que viram, nem para lembrar que existem, que são pessoas e estão destroçados. Falta-lhes o filho, o pai, a mãe, o marido ou a mulher, falta-lhe alguém porque são gente, são de carne e osso e as pessoas de carne e osso têm família, laços.

O vazio começa agora. Não é o meu vazio, não é o meu luto, nem aquele que o governo decretou, não é sequer a minha aflição perante a desgraça, nem o dia de trabalho. Sou jornalista, faz parte, mesmo que me trema a voz e me confunda e emocione, nada disso tem a dimensão do sofrimento e da dor dos outros, aquela dor e aquele sofrimento que a minha mãe me ensinou a respeitar nas vezes que me levou pela mão a 15 de Agosto à Nossa Senhora do Monte e eu quis fechar os olhos para não ver as mulheres de velas na mão e joelhos a sangrar. Elas existiam, estes sobreviventes existem como existem os do 20 de Fevereiro, mas nós só nos lembramos deles uma vez ao ano, quando nos lembramos. Eles vivem todos os dias com os seus traumas, dores, feridas, perdas, e vivem como podem, como conseguem.

Eu tinha pensado falar do Monte, tinha idealizado um texto bem disposto, queria falar das matracas de plástico que enlouqueciam a minha mãe no caminho de regresso a casa ou o farelo dos ‘ió-ió’ espalhado pelo chão do carro do tio Humberto, queria falar das saudades de ser miúda e correr atrás do meu irmão para todo lado, mas não é possível. Às vítimas do Largo da Fonte deixo este texto, deixo as palavras, que são o melhor que sei fazer e a única arma que conheço contra o vazio, o silêncio e o esquecimento.