Crónicas

O resto é PAISAGEM...

As gerações médias e mais velhas lembram-se de como era a estrada entre o Monte e o Poiso, com a magnifica Ribeira das Cales e como hoje parece uma zona bombardeada

A paisagem humanizada da Madeira é o nosso grande recurso, depois naturalmente do capital humano. Os povoadores e todos os que lhes seguiram, em diferentes épocas da nossa História de 600 anos, souberam rasgar o basalto e das entranhas da terra retirar o seu sustento. Deus brindou-nos com uma ilha maravilhosa e os que aqui aportaram e aqui nasceram, souberam tirar partido das suas condições inigualáveis, quer em termos agrícolas nos primeiros séculos, quer, mais recentemente, como cartaz turístico. Se o Criador nos ofertou uma beleza arrebatadora, com montanhas imponentes e uma floresta exuberante, o homem completou-a fazendo as levadas e essa verdadeira epopeia da água e domando a terra com a construção dos poios e dos socalcos à beira da rocha. A nossa Paisagem é essa obra divina e humana que fez da ilha a Pérola do Atlântico. Já foi mais bonita e autêntica? Já, já foi muito mais, mas ainda vamos a tempo de recuperá-la e conservá-la, potenciando as suas mais valias.

No final do século passado, assistiu-se a um surto de desenvolvimento que, nalguns casos, provocou profundas transformações no território, algumas muito positivas porque trouxeram melhor qualidade de vida às pessoas, mas noutros casos, por falta de planeamento, feriram, gravemente, o nosso Ambiente e as belezas da ilha. A construção da rede viária, em particular, originou alterações na fisionomia da ilha que poderiam ser evitadas, de que o melhor exemplo são as ligações entre os três concelhos do Norte e, em especial, os troços tradicionais abandonados entre São Vicente e o Porto Moniz, um ex-libris que deitámos fora. Há outros exemplos, como equipamentos públicos sobredimensionados, de grande volumetria, com traços arquitetónicos modernos e sem qualquer integração na paisagem rural ou tradicional da Região. A construção desenfreada usou e abusou dos solos, muitas vezes sem planeamento e ordenamento, e isso também é visível na redução das áreas agrícolas e na instabilidade de muitas escarpas e taludes do território. Se a isso juntarmos os fogos frequentes que dizimaram vastas zonas florestais e as alterações climáticas, com períodos de seca, alternando com chuvas torrenciais e ventos cada vez mais fortes, temos uma noção mais clara de que temos que atuar no território e, nomeadamente na paisagem, com mais moderação e com outra visão.

As gerações médias e mais velhas lembram-se de como era a estrada entre o Monte e o Poiso, com a magnifica Ribeira das Cales e como hoje parece uma zona bombardeada; recordam-se da beleza das Carreiras e das Quatro Estradas e de como tudo foi infestado por plantas invasoras; têm saudades de descer da Portela para o Porto da Cruz e ver as bermas cheias de novelos e de coroas de Henrique, agora abandonadas; têm nostalgia da estrada entre a Camacha e o Santo e das paragens para comprar produtos agrícolas, hoje inexistentes; têm saudades de subir por vários acessos ao planalto do Paúl da Serra e comtemplar a paisagem imaculada do Sul e do Norte, hoje, em parte, já degradada. Tanta coisa bonita que se perdeu, também, a nível do património edificado, apenas e só porque se fez o “novo” e se abandonou o “antigo”, afinal o mais genuíno e aquilo que nos distingue de outras terras e de outros destinos turísticos.

Nem tudo está perdido, mas muto precisa de ser preservado e valorizado. Já imaginou o que seria da paisagem do sul da ilha, a começar no Funchal e a acabar na Ponta do Sol, sem os imensos bananais que enchem de verde as escarpas e as fajãs da orla costeira? O que seria da zona alta de Câmara de Lobos sem aqueles vinhedos imponentes do Estreito, e como seria a zona mais baixa, sem aquele bordado verde da Caldeira? O que seria da Ribeira Brava, sem aqueles poios lindos e perigosos, Encumeada fora, imunes às vertigens? O que seria da paisagem da Calheta sem os Lombos ou os canaviais que nos dão o mel e um fantástico rum? O que seria do Porto Moniz, sem as mantas da Santa ou as vinhas do Seixal que se prolongam pelo imponente vale de São Vicente? O que seria de Santana, sem as Achadas e os magníficos terrenos cultivados por verdadeiros jardineiros da paisagem? O que seria do vale de Machico sem o verde que se derrama até ao mar? O que seria Santa Cruz sem as suas zonas altas e os terraços que bordejam as margens das ribeiras? Já agora o que seria do Porto Santo sem a praia, a precisar de cuidados? Já imaginou as duas ilhas sem estes valores ambientais e paisagísticos? Não deixemos estragar o que nos resta!

O Parlamento aprovou por estes dias, por proposta do CDS, a criação do “Observatório da Paisagem da Madeira” para monitorizar e valorizar o que é nosso. É um bom começo, mas há muito para fazer, a começar pela revisão do Plano de Ordenamento do Território, pela elaboração dos Programas de Ordenamento da Orla Costeira, pelo cumprimento dos Planos Diretores Municipais e pela aplicação no terreno de um Plano de Recuperação da Paisagem que mobilize todas as autarquias, o Governo, as empresas e os cidadãos nessa tarefa única que é fazer da Madeira e do Porto Santo, ilhas ainda mais bonitas. O resto é paisagem...