Crónicas

O dr. Castanheira livrou-nos de boa

Nessas alturas escondia-me atrás das pernas do meu pai e ficava a ouvi-lo dizer que a culpa era dele, tinha feito mal o telhado do meu quarto e todas as noites chovia na minha cama

A vida nos anos 70 não era má ou não foi má para nós os netos do senhor Francisco, o Meia, lá por cima no Laranjal. Aquilo era o fim do mundo, não tinha luz no caminho, a água da câmara não chegava a todas as casas, mas o mais estranho eram mesmo as ideias e os hábitos das pessoas. De modo que, quando penso na minha infância, lembro-me sempre do dr. Castanheira e no quanto lhe devemos, o meu irmão e eu.

O dr. Castanheira dava consultas de pediatria na Caixa num tempo em que o normal era um médico atender todos, velhos, homens feitos e crianças. O que tornava aquele senhor baixo um semi-deus, cuja palavra tinha valor de lei. Se o dr. Castanheira dizia então era verdade, não se falava mais do caso, era quase um antídoto para todas as ideias esquisitas, crendices e aqueles métodos medievais que resistiam ainda ao mundo novo que subia encosta acima.

O tal mundo moderno que nos resgatou mesmo a tempo de carregar vida fora o fardo pesado dos traumas. O meu irmão e eu tínhamos tudo para entrar no processo de como ensinar bem uma criança segundo as regras do Laranjal já que sofríamos de dois pequenos defeitos de fabrico, daqueles que o povo insistia em corrigir sem piedade: o meu irmão era canhoto e eu fazia chichi na cama. Estranheza e manha que, para quem percebia de disciplina, tinham remédio. Ai se tinham, era querer dona Celina, diziam algumas vizinhas.

O meu irmão ia usar a mão esquerda, a mão do demónio, para se benzer e escrever? Mais valia embrulhar num saco e reprimir qualquer tentativa de usar a mão esquerda com uns açoites bem puxados. A quem teria saído o rapaz, tão alvo e rosado, mas, ó pobrezinho, tão descaradamente canhoto? A minha mãe fazia que não ouvia e a pressão aumentava, aumenta sempre quando alguém ousa fazer diferente.

Ficava canhoto ou era destro à força? A minha mãe foi perguntar ao dr. Castanheira na consulta da Caixa e veio de lá com a resposta: ficava canhoto que era a natureza do pequeno. Um médico não se desmentia e, por isso, foi também o dr. Castanheira que acabou com todos aqueles conselhos de tortura com urtigas nas pernas, surras e outras práticas capazes de destruir até o equilíbrio de um adulto quanto mais de uma miúda de seis anos.

Eu não era canhota, mas fazia chichi na cama e não era bom, nem bonito e morria de vergonha quando a minha mãe e as minhas tias falavam do assunto. Nessas alturas escondia-me atrás das pernas do meu pai e ficava a ouvi-lo dizer que a culpa era dele, tinha feito mal o telhado do meu quarto e todas as noites chovia na minha cama.

Mas eu tinha um problema e medo que um dia o meu pai e a minha mãe se cansassem do chichi que eu não conseguia controlar. Quem sabia se não iam na conversa de me passar urtigas nas pernas todas as manhãs? Os miúdos do Laranjal conheciam bem os poderes das urtigas, como picavam e deixavam as pernas vermelhas durante um bom bocado.

De modo que a minha mãe decidiu que o melhor era o dr. Castanheira tratar do caso. Ainda hoje não sei bem como fez, mas falou comigo, olhou-me nos olhos e disse-me que era tempo de eu ganhar aquela luta. Talvez tenha sido da bata branca, de ser o senhor doutor, da vergonha e do medo de falhar. A verdade é não voltei a fazer chichi na cama, acabaram-se as conversas dos castigos e pude crescer sem traumas. Pelo menos sem esse, o que, para o que vida nos traz e nos leva, um menos é sempre bom. E devo-o ao dr. Castanheira, pediatra que dava consultas na Caixa.