Crónicas

Nós íamos inventar o amor

Mas nada seria tão grande como o amor que cada um estava disposto a viver. Cada um daqueles rapazes e daquelas raparigas, cada coração escondido por detrás das roupas esquisitas tinha um desejo, um desejo puro de se apaixonar perdidamente

Houve um tempo assim, em que soube tudo, teria talvez 20 anos e queria tudo de uma só vez. Eu, a gorda das meias de renda pelo joelho, que sonhara ser transparente para desaparecer nas aulas de ginástica, passara à universitária de cabelos pelas costas que lia poesia em cima do terraço nas férias e ia ao cinema às segundas para ver filmes a preto e branco com histórias estranhas, mas cheias de significado.

E depois vagueava pelas ruas, às vezes comprava um gelado para ajudar a arrastar a indolência quase como aqueles grupos de adolescentes que, volta e meia, irrompem pelo centro comercial e olham para tudo de alto a baixo. Eu tinha a certeza que o mundo, tudo o que nele existia, começava comigo, com os meus amigos e as nossas conversas. O amor e a arte seriam reinventados como nos cafés de Paris e, do Funchal, chegavam as cartas do meu irmão, que era poeta e autor de um opúsculo sombrio, o Caruncho.

Nós sabíamos o que era bonito, o que tinha valor, os livros que deviam ser lidos e até como devíamos vestir. De preto, claro, de preferência surrado, usado e gasto, coisas tiradas das gavetas que, naquele virar da década, queríamos esquecer os néons, a euforia que a música pop trouxera, os cabelos com permanentes, a maquilhagem vistosa, as unhas pintadas. Ao natural como os livros que íamos todos escrever, assim, sem efeitos especiais, histórias de todos os dias, coisas de pessoas, de gente de carne e osso.

Mas nada seria tão grande como o amor que cada um estava disposto a viver. Cada um daqueles rapazes e daquelas raparigas, cada coração escondido por detrás das roupas esquisitas tinha um desejo, um desejo puro de se apaixonar perdidamente. E não podia ser aquele noivado longo a juntar dinheiro para dois quartos e cozinha ao lado da casa do pai, nem a poupança para a entrada num apartamento da cooperativa, nem a festa ou vestido branco. Seria mais, muito mais, seria além de qualquer romance vivido por dois seres humanos.

Não teria formato. Não teria o formato daqueles amores dos hippies, nem a leveza dos anos 80, não seria rígido como o andar para casar do Laranjal, seria nosso, único, uma coisa de filme de rapariga encontra rapaz e nunca mais o esquece e rapaz vai atrás da rapariga até o fim do mundo e os dois guardam o bilhete do autocarro onde se viram pela primeira vez. Eu guardava as entradas do cinema e durante anos mantive com muito carinho o bilhete da primeira vez que andei de metro em Paris. Nada era mais romântico do que guardar tralha.

Eu sabia tudo, até o que era amor puro e o amor lamechas das telenovela assim com a mesma convicção com que julgava ser capaz de definir o bonito, o que tinha valor artístico, o que era fancaria. Houve um tempo em acreditei nisso, tinha 20 anos, tinha muitas ideias, a maioria delas tolas e disparatadas.