Crónicas

Fruta podre cai sozinha

A democracia é aparente e altamente condicionada, as liberdades cerceadas com os opositores a serem presos sem justa causa e a suposta ordem pública a servir de justificação para cercear a livre opinião, fazer imperar a censura e impedir as espontâneas ou organizadas manifestações populares

Visitei a Venezuela mais do que uma vez no exercício das minhas funções governativas. Descobri um país rico com gente pobre. Quer dizer, nem todos eram carentes ou desfavorecidos. Havia quem fosse muito abastado ou estivesse bem de vida. Foi esta dissonância social, muito característica da América do Sul, que impediu que este território ganhasse estabilidade e reentrasse na rota que lhe podia trazer sucesso. É uma das causas. Uma entre muitas outras.

Antes da crise do petróleo havia superavit orçamental. E, nessa altura, deveriam ter distribuído melhor a riqueza. O establishment não deixou. Ou não quis. Com o “ouro negro” em baixa, como nunca antes tinha sido visto ou esperado, ficou mais difícil encetar as reformas que a maioria da população exigia e anseava.

Mas no fundo, verdade seja dita, o problema maior até pode ter sido o petróleo mas a politica não tem ajudado. Antes pelo contrário. Tirando aqueles que sobrevivem a qualquer regime, os que enriquecem adaptando-se a qualquer situação, o povo, esse desespera, vive em insegurança e aflição e vê a esperança em dias melhores esfumar-se todos os dias por entre as mãos.

Noutros tempos esta República Bolivariana vivia refém de um sistema bipartidário à americana. Com relevo para AD e COPEI. Os partidos de então revezavam-se no governo, sempre fazendo os poderosos mais fortes e os desprotegidos cada vez menos. Não satisfeitos com a alternância apimentavam as respectivas gestões públicas com salpicos de casos menos claros que revoltavam a opinião pública e todos os que permaneciam lutando com dificuldades.

A ascensão de Chávez era um aviso sério, a esses outrora detentores do poder, que aqueles tempos não voltariam mais. E não voltaram. Mas com “El Comandante” e o seu radicalismo pouco iluminado a politica deteriorou-se de tal forma que parece ter passado a ser institucional. Veio para ficar. Até ao ponto que o ‘chavismo’ sobrevive à morte do seu mentor. Agora com um protagonista mais fraco, mais isolado internacionalmente e com menos apoio eleitoral, como se viu aliás nos diversos sufrágios a que se submeteu.

O que não se pensou foi que aquela nação, dantes rica, apesar de socialmente injusta, fosse descambar para uma situação absolutamente impensável há uns anos atrás. Mesmo governada por incapazes politicamente extremados. A crise económica é profunda e a inflação é a maior do mundo. As condições de vida deterioraram-se a tal ponto que os bens essenciais escasseiam e são racionados, a população vive em sofrimento e até os medicamentos têm que ser encontrados no estrangeiro onde se encontram familiares a viver, como aqui na Madeira. Que começa a receber os que já fogem do caos. E não sei se já estamos prudentemente preparados para isso. Valha-nos entretanto Miami, Colômbia e outros destinos que vêm sendo primeiras opções.

A democracia é aparente e altamente condicionada, as liberdades cerceadas com os opositores a serem presos sem justa causa e a suposta ordem pública a servir de justificação para cercear a livre opinião, fazer imperar a censura e impedir as espontâneas ou organizadas manifestações populares. Utilizando inaceitável violência que já resultou em vidas injustificadamente perdidas. A convocação pelo actual presidente de uma nova assembleia para rever a Constituição venezuelana é considerada antecâmara de golpe do Estado que vem aí. O país bateu no fundo. E já ninguém sabe como será o dia de amanhã.

Há quem pense, legitimamente e com optimismo, que uma vez derrubado o regime tudo melhorará. Acho que sim. Politicamente. A nível dos direitos, liberdades e garantias, com certeza. Agora no resto, vai ser preciso muito acerto. Ultrapassar as divisões que naturalmente surgirão na agora oposição uma vez no poder, saber gerir a crise do petróleo, restabelecer o convívio internacional ganhando credibilidade, restabelecer a confiança nos agentes económicos, combater a criminalidade exponencial que grassa internamente, distribuir melhor a riqueza combatendo as gritantes desigualdades sociais, confortando o povo e fazendo-o reganhar a esperança. Missão hercúlea.

Haverá gente de destino para executar a árdua tarefa? Com vontade haverá, se com capacidade e condições, só o futuro o dirá.

Mas, para isso, vai ser preciso que Maduro “se va”.

Diz-se que fruta podre cai sozinha. E a madura?