Crónicas

Do avesso

As mudanças para serem tidas como sérias têm, obrigatoriamente, de ser genuínas e profundas. Para isso, é necessário entrar num estado de reflexão, ponderar os prós e os contras, dar início às catarses, não ter medo de tomar decisões, reconhecer humildemente os erros e tentar corresponder àquilo que é esperado

No dia em que o Diário de Notícias da Madeira assinala os seus 141 anos, fala-se de capicuas. Ironicamente, os catalães reclamam como sua a origem desta palavra que terá surgido nos finais do século XIX em Barcelona. Dizem também que um número capicua traz boa sorte. Os místicos e os adoradores das teorias da conspiração conseguem retirar significados e ilações que deixam muitos incrédulos de boca aberta.

Tal como os números, o “fenómeno” capicua também pode ser aplicado a alguns mamíferos pensantes, dotados de alguns dons que os tornam em seres alegadamente inteligentes. Seres bem-falantes, com poder de oratória e que, a exemplo das capicuas, podem virar-se do avesso que vão dar sempre a mesma leitura.

Ultimamente têm surgido na praça pública muitas “capicuas” com cérebro. Alguns podem discutir e colocar em causa a qualidade produzida pelos ditos neurónios, outros podem simplesmente ignorar e há outros ainda que se mostram genuinamente preocupados com o aparecimento, cada vez mais frequente, de gente às avessas que pode ser vista da direita para a esquerda ou da esquerda para a direita que a leitura será, inevitavelmente, a mesma. Ou seja, mudam-se as peças daqui para ali, apresenta-se uma nova roupagem, mas o resultado é sempre igual. Cansativamente igual. Nefastamente igual.

As mudanças para serem tidas como sérias têm, obrigatoriamente, de ser genuínas e profundas. Para isso, é necessário entrar num estado de reflexão, ponderar os prós e os contras, dar início às catarses, não ter medo de tomar decisões, reconhecer humildemente os erros e tentar corresponder àquilo que é esperado. Estar à altura dos desafios não é tarefa fácil, mas tal como diz o povo, quem não quer ser lobo que não lhe vista a pele.

Todos nós sabemos que há sempre consequências quando decidimos mudar comportamentos e abdicar de vícios. Os pratos da balança desequilibram-se, fazendo com que se questione a eficácia das decisões. Vacilar não é hipótese quando se quer ir em frente. Os medos torturam a mente, impedem que se veja com a clareza necessária o caminho traçado e é aqui que aparecem os cagaços.

E, de repente, está o mundo às avessas...

A forma como escolhemos sair deste estado de exasperação vai ditar de que massa somos feitos. A determinação, coragem e resiliência sempre foram características admiráveis. Nem todos as têm e nem todos conhecem o seu verdadeiro significado.

A memória é outro dos trunfos importantes. A herança que foi passada de geração em geração ensina-nos que a pólvora já foi descoberta há muito, muito tempo. Ou seja, não há grandes coisas para descobrir ou inventar. Basta folhear, por exemplo, os 141 anos de história deste Diário, para perceber que há para aí umas mentes iluminadas que chamam a si os louros de certas e determinadas conquistas, quando na verdade, houve homens e mulheres brilhantes que lutaram, muito antes deles, para que essas conquistas acontecessem.

O próprio Diário tem a sua quota parte de responsabilidade na construção desta Madeira de Ouro. Foi através destas páginas que se travaram importantes batalhas e ao contrário daquilo que apregoam algumas “capicuas pensantes”, a Autonomia não começou nos anos 70. A luta por mais e melhores condições foi desencadeada aqui, «nesta folha», pelos jornalistas visionários que transitaram do regime monárquico para os tempos conturbados da I República. Também foi através destas páginas que se lutou pelos serviços hospitalares e defendeu-se a criação de uma Zona Franca. Foi este Diário que impediu, a título de curiosidade, que um príncipe alemão tomasse conta dos sanatórios e das águas madeirenses de forma pouco ortodoxa.

Percorrer os 141 anos do DN Madeira faz com que caiam por terra muitas pregações de auto intitulados salvadores da pátria que não sabem e nem querem saber que, por exemplo, a ideia de transformar as festas de fim de ano em cartaz turístico internacional foi dada aqui, nestas páginas, que contam a história e a determinação de um povo. Do nosso povo!

Portanto, tudo isto para dizer que podem virar-se do avesso à vontade. Até podem partir a espinha de tanto contorcionismo, mas há sempre alguém que sabe que debaixo daquele tapete há um monte de lixo.

Há que saber honrar a memória e o legado daqueles que, em tempos idos, marcaram o passado desta terra e abriram caminho para que pudéssemos chegar até aqui. É óbvio que os egos inchados não deixam muita margem para que esse respeito prevaleça.

«Lembra-te que existes porque houve outros antes de ti». A frase é de Confúcio e serve para mostrar às tais «capicuas» que há um passado que fala por si.