Crónicas

Deliciosamente ridículas

Os rapazes não olhavam para as gordinhas que usavam saias de fazenda e meias de renda de algodão

Os gatos piscam-me os olhos do sofá, enquanto eu passo em revista as fotografias antigas que trouxe de casa, da velha casa da infância, aquela da Estrada Comandante Camacho de Freitas, empoleirada numa curva apertada onde, na adolescência, arrastei o tédio pelo quintal e imaginei o futuro de frente para o espelho do quarto de engomar. Lembro-me de desejar um espelho mágico que me desse a ver como seria aos 27 e aos 37 anos, depois disso não me interessava. Seria uma velha.

E aqui estou em fotos tipo passe dos cartões da escola, com penteados a lembrar o estilo dos jogadores da bola dos anos 80, também apareço nos ensaios do teatro da paróquia e em poses mais artísticas dos tempos da faculdade, quando tudo parecia encaminhado para uma fulgurante carreira no cinema e na fotografia a preto e branco. Os amigos deixaram-me votos entusiasmados nas fitas agora já descoradas pelos anos.

Trouxe também um postal do dia da mãe de 1980, feito por mim, a falar da melhor mãe do mundo e com erros ortográficos e vários borrões. Não engana, é mesmo meu, diz-me muito do fui, daquela miúda desastrada, que caía muitas vezes e transpirava das mãos quando havia ditado na escola. As coisas que se guardam! Não faltam cartas, os bilhetes das primeiras viagens de avião e um bilhete do metro de Paris.

Há algo mais romântico do que guardar dentro de uma gaveta, entre óculos de sol velhos e brincos descasados, um bilhete do metro de Paris com data de 1994 e encontrá-lo 20 anos depois? Eu não vejo nada mais sentimental, mais inútil e despropositado e é dessa matéria que se fazem os românticos. Foi por isso que guardei as cartas das amigas, os postais do estrangeiro e aqueles livros de autógrafos com folhas cor-de-rosa que todas as miúdas de 16 anos tinham e onde colecionavam as dedicatórias dos colegas de turma.

As fotografias misturam-se entre papéis, aparece-me a cédula de nascimento com a data do meu baptizado, a primeira carteira de jornalista e vejo-me de cabelo curto, de cabelo comprido, lábios pintados e vestido justo no baile de finalistas em Lisboa. Passam-me memórias, vejo caras conhecidas, gente que passou pela minha vida e depois seguiu caminho e reparo que guardei quase tudo menos as cartas de amor. Não ficou nada, nem bilhetes com corações do dia dos namorados ou declarações de amor no verso da entrada do cinema.

Não sei se foi da raiva ou da mágoa, devo ter tido os meus motivos, mas eu que gosto de memórias, de guardar o que ninguém considera importante, não deixei rasto daqueles amores de adolescência. A miúda com as pernas dependuradas na varanda do terraço, que contava autocarros e imaginava como seria aos 27 tinha lá, bem escondido, um coração e quis muito ser feliz, sonhava com isso e deitava as sortes na véspera de Santo António só para ver que nome teria, que cara teria. A minha mãe dizia que se pusesse um cravo branco debaixo da almofada era garantido. Lembro-me disso, mas do resto não deixei vestígio. Talvez tivesse medo de ser gozada e estar apaixonada dava para a turma toda e o meu irmão troçar durante uma semana, um mês inteiro. E eu sempre tive pavor do ridículo, mostrar o coração equivalia a estar no centro da sala, sem defesas, à vista de todos, de todos os olhares. Eu era a miúda da casa empoleirada numa curva apertada da Camacho de Freitas, que transpirava das mãos nos ditados e nas aulas de dactilografia e pensava que o amor não era para as gordinhas.

Os rapazes não olhavam para as gordinhas que usavam saias de fazenda e meias de renda de algodão. Às vezes parecia que o sentimento e toda aquela matéria de que se faz o amor estavam reservados a alguns, aos bonitos, os ricos, aos populares, mas era apenas medo, medo de viver com o coração destroçado. E, por tudo isso, não guardei as cartas de amor, as tais que hoje seriam deliciosamente ridículas.