Crónicas

Atrás do tapa-sol

Também se falava das mulheres que estudavam, das que se sentavam nos cafés, das que iam trabalhar, das que pintavam os lábios e arranjavam o cabelo.

Nasci numa família de mulheres, daquelas com muitas tias e primas, daquelas que se juntavam a bordar no terreiro, onde vinham dar as vizinhas. A telefonia dava a música pedida e as mulheres falavam, falavam muito, de tudo, do tempo, das doenças, de quem tem embarcado ou se ficava bem ir comungar com uma blusa de alças e umas calças compridas. O padre Conceição tinha negado a comunhão a uma prima acabada de chegar do Brasil, lá ninguém dava importância a mostrar os braços ou vestir calças como homem. Só que isso era por lá, numa terra de calor.

Aqui também era quente, o sol dava em cheio no quintal e bordar só na sombra, mas as mulheres lá de cima do Laranjal guardavam respeito às coisas da igreja, nada de saias curtas e ombros à mostra na missa. Quatro centímetros de manga a menos foram suficientes para a minha mãe deixar na loja um vestido, não era decente para sair na procissão e com a igreja não se brincava. Nem com o luto, que era preto dos pés à cabeça e nunca menos de um ano. As viúvas, essas, abraçavam o negro até morrer.

E, na roda do bordado no terreiro, enquanto tocavam fados da Amália e as músicas do Teixeirinha, quem pisava o risco era falado e as mulheres não gostavam de ser faladas, mas nada era pior do que ter má fama por olhar para rapazes. E uma rapariga, mesmo bonita e simpática, dificilmente recuperava de um noivado desfeito, era o mesmo que ficar para tia. Não teve sorte, dizia-se depois, talvez aparecesse um viúvo ou um divorciado. O mal era o casamento no civil não ter o mesmo valor, as famílias tinham medo dos homens separados. Não sei se era disso, mas havia muitas mulheres solteiras.

Também se falava das mulheres que estudavam, das que se sentavam nos cafés, das que iam trabalhar, das que pintavam os lábios e arranjavam o cabelo. E lembro-me de ouvir a minha mãe contar que foi ao médico da vista às escondidas da minha avó que não achava bem que uma mulher casada usasse óculos. E não, nada disto aconteceu há 100 anos, num lugarejo sem electricidade e sem televisão. Foi aqui mesmo, a sete quilómetros da baixa e a meados da década de 1970. Eu lembro-me das viúvas de preto, das raparigas faladas por se terem apaixonado por um homem divorciado, das solteironas que não tiveram sorte e a quem nunca apareceu um viúvo para as resgatar.

O vestido que ficou na loja por não ter mangas era para mim e lutei muito para ir à praia, ao cinema e a uma esplanada da marina beber uma Pepsi com limão e gelo, mas eu tive sorte. A televisão, a liberdade de costumes das telenovelas brasileiras e o espírito da época acabaram por subir a encosta e chegar ao Laranjal a tempo de não me cortar os sonhos, nem o futuro. Não me posso queixar, as circunstâncias permitiram-me fazer escolhas, mas penso muitas vezes na coragem dos meus pais, sendo aquele o ambiente, sabendo o medo de todas as famílias, o medo de ter uma filha falada.

Ainda me lembro de como oprimia, como era injusto, de como controlava até o pensamento e nos reduzia as possibilidades só por ter nascido mulher . Sei que os tempos mudaram, são mais esclarecidos, mais livres, mas volta e meia, por entre a teoria de que cada um vive como entende, vislumbro aquele policiamento moral, às vezes disfarçado de tolerância, outras na forma do troll da internet. De uma maneira ou de outra, dá a sensação que nos vigiam, quase como antes, atrás do tapa-sol, à espera de um deslize, de uma palavra, de um detalhe qualquer que permita falar, julgar e sentenciar.