Crónicas

43, a vitória do povo do fim do mundo

O governo metia respeito e, como dizia a minha tia Alice, nós moravámos no fim do mundo, ninguém se lembraria de prestar atenção.

Quando a Companhia de Automóveis de Santo António acabou - ou melhor quando se fundiu na Transfunchal - foi um levante lá por cima no Laranjal, que o povo tinha orgulho nos carros e não estava certo apanhar o horário na avenida e ter outras cores, uma pessoa até se baralhava, ia para Santo António num autocarro de São Martinho.

E toda a gente sabia que os melhores autocarros do Funchal eram os de Santo António. Ou pelo menos dizíamos nós porque quando se levanta uma polémica o primeiro que se perde é bom senso. Já era assim a meados dos anos 80 e, no auge da indignação, ficaram esquecidos os velhos horários a cheirar a borracha queimada, quentes, com as portas automáticas avariadas e as janelas empenadas, por onde entrava a chuva nos dias de invernia.

Aquilo de meter todas as companhias numa só não tinha jeito e o povo do Laranjal e do Jamboto juntou-se a fazer um abaixo-assinado, o equivalente às petições de agora, aquelas que se subscreve online. Em 1983, 1984 era em papel, com assinatura feita à mão e o número do bilhete de identidade escrito à frente e com direito a uns enganos e borrões. As gentes do Laranjal e do Jamboto não estavam muito acostumadas a escrever.

Eu também assinei, tinha 12 anos e senti-me importante por fazer parte do protesto que exigia uma ligação de autocarro ao centro da freguesia. E parece pouco, eu sei, mas em 1983 foi uma ousadia aquele molho de folhas de papel com assinaturas de gente simples, que quase nunca escrevia e tropeçava nas palavras com o nervoso. As minhas tias, a minha mãe, o meu pai e os vizinhos puseram lá o nome, meio a medo e quase sem esperança.

O governo metia respeito e, como dizia a minha tia Alice, nós moravámos no fim do mundo, ninguém se lembraria de prestar atenção. Era assim sempre. A luz no caminho chegou tarde e nunca tínhamos facho pela Festa de modo que o horário para passar na igreja era mais uma questão de brio e de orgulho. E estava nesse pé quando se soube que a empresa ia criar a carreira 43 e por causa do abaixo-assinado.

Foi um dia de vitória. O 43, que ainda existe, foi uma conquista nossa, do povo, sem meter partidos, sem jornais ou notícias na televisão, que antes não era assim. As redes sociais nem nos filmes de ficção científica apareciam e também não me lembro de ouvir falar dos direitos dos cidadãos. Acho que isso era muito sofisticado e lá por cima o que se queria mesmo era ter um autocarro para ir à junta de freguesia quando fosse preciso.

Também se apanhava o 43 para ir para a escola, para o trabalho, a minha mãe ia muitas vezes na carreira quando ia às quartas-feiras à casa de bordados e eu apanhei-o para ir buscar o certificado de residência por causa da candidatura à faculdade. O 43 era nosso, dava jeito e era a prova de que, às vezes, até nós, os habitantes do fim do mundo, podíamos ganhar.