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Vendo de fora o Verão

lembra-me desses tempos, o Savoygate (...), uma discussão partidária sobre culpa, que chega depois e acaba quando acabarem as eleições

Espaço Público

Corre uma polémica estival para apurar a paternidade do novo Savoy.

Tolhido pelos flagelos de um emigrado no seu País, ainda não o vi ao vivo. Vejo-o em fotografias. Na verdade, vejo partes dele em fotografias, pois não inventaram ainda objectiva que capture o titânico imóvel na sua inteira majestade.

Acompanho pouco do que se diz ou não se diz – é outro dos flagelos de um emigrado no seu País. Mas permito-me achar, num típico exagero de Verão, que um transatlântico não se construiu na baixa funchalense por obra ou graça de um ou de outro indivíduo.

Também não é um órfão. Pela sua dimensão e importância material e espiritual, segue ali uma obra colectiva: de ação e omissão, de saber, de não saber e de não querer saber, de risco e silêncio, de quem faz e de quem deixa fazer. Que se fale nisso agora, com o facto consumado, diz mais da cultura democrática da região do que das partes directamente interessadas.

Pequeno desabafo e grande parêntesis: escrevo neste Diário há alguns anos. E neste Diário escrevi numa altura em que todos os filiados no PSD-Madeira deixaram de o fazer, num protesto então duro. Escrevia por inocência e não propriamente por desafio. Escrevia sem ser filiado, e sem assunto recorrente. Mas este acto – normalíssimo – fez confusão, ruidosa confusão, a algumas cabecinhas. Para elas, por vocação ou necessidade, tudo tinha de ser política. E tudo nesta terra tinha de ter um significado político. Incluindo os rabiscos mensais de um miúdo num jornal.

Entristecia-me. Mas lembra-me desses tempos, o Savoygate. Não é uma discussão imparcial sobre o impacto económico e paisagístico, sobre a qualidade e natureza do destino, a acabar antes de colocar a primeira pedra. É uma discussão partidária sobre culpa, que chega depois e acaba quando acabarem as eleições.

Na Madeira não existe, ainda, uma separação entre o exercício da cidadania e a política organizada. Ninguém pode criticar uma instituição, um dirigente, ou mesmo inanimados prédios, estradas ou passadiços, sem daí se retirar uma leitura. E por isso só critica e age quem tem interesse eleitoral, e por causa disso. E é assim com tudo: veja-se a disputa pelo saldo da reconstrução nos incêndios, em que Câmara e Governo contendem entre si um mérito que é de todos, e na verdade um elementar dever. Veja-se e a mini-polémica sobre os apoios ao Rali (preciso de fazer uma declaração de interesses?).

Quanto tempo, inteligência, oportunidade e boa-vontade não se perdem nestes toureios? Ainda não nos convencemos de que vivemos isolados, num equilíbrio económico e ambiental delicado. Numa terra a que não falta corporativismo, mas conhecimento desprendido. Num contexto europeu hostil, que não se compadece com divisão artificial e eleitoralismo duplicado.

A dada altura, esperei ver melhorias neste ponto. Mas não é uma questão de governo, que aí cumpriu. É questão de mentalidades e de mundo, ou falta dele. Há vida além das eleições. Parte dela está ali, pujante e colossal, construída na baixa do Funchal. O novo Savoy. Os supostos pais passam. As cabecinhas passam. Ele não.

Xangai

O voo directo de Lisboa para Porto Santo custava por estes dias – melhor das hipóteses – 714 €. Aplicando-se a regra de ouro do consumidor racional, a viagem de ida e volta ao Porto Santo compete com uma viagem à exótica e distante Xangai, e três noites num hotel decente dessa mega-metrópole onde os néons do skyline de Pudong comungam com a sombra dos juncos e com a riqueza dos ancestrais sedimentos do estuário do rio Yangtze.

Mas não, Vila Baleira.

O Porto Santo, para mim, quase justificaria este valor. Um sítio que, por mais que mude, está sempre no princípio. Do mesmo passo caprichoso, comunitário e quieto. Sem pressa, porque é da ordem das coisas que não se tenha onde chegar. Sem tempo, porque renova uma memória primeira, imóvel e familiar, trabalhada pelas gerações. Uma memória anterior à linguagem, de paisagens, de sons e de cheiros, e que revive e supera, no presente, o tempo recordado.

Quando reconheço que o Porto Santo tem para mim este valor, é talvez uma marca de conhecimento pessoal.

Quando o mercado sabe que o Porto Santo tem para nós este valor, não se percebe se acerta ou se falha. Mas suspeitamos. E, suspeitaremos, um dia, em mandarim.