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Trilhos da memória

A vereda que hoje se transforma em trilho periódico de corrida foi testemunha de um modo de viver

Eles passam a correr, vindos da Rocha. Vê-los suados do esforço da subida da vereda que vem da ribeira lá em baixo, traz à memória rotinas que durante décadas, séculos marcaram o viver da nossa ruralidade. A esta hora matinal, quando o sol ainda não dá neste lado da encosta, já se estaria também a vir da Rocha talvez com um molho de erva, ou um cesto de cebolas, semilhas, às costas... Isso era dantes, quando a fértil terra da Rocha devolvia a sobrevivência em verde e fruto. E a vereda era trilho quotidianamente palmilhado e regado pelo suor das gentes de cargas ajeitadas à cabeça, ou como desse mais jeito transportar. Mas não só. Durante muito tempo foi caminho andarilho de madrugada para a cidade, para a venda de hortícolas porta a porta...

Hoje já ninguém o faz. E só o trabalho de limpeza do percurso da corrida, a novel atividade de “Trail running”, permite pôr temporariamente a descoberto, memórias e trilhos adormecidos debaixo da densa vegetação que cobre os terrenos abandonados... Mas durante tempo indeterminado, a Rocha foi solo arável, herança passada de geração em geração, onde os de antanho construíram espaços de cultivo, embalados pela zoada da ribeira. Possível espaço para o controverso pastoreio da discórdia?

Começava-se a descer e subir a vereda (não a correr contra o cronómetro da competição como hoje) bem cedo. Logo após o gatinhar, guiados pela mão e o exemplo dos mais velhos aprendia-se as lides da terra, ritual iniciático das durezas da vida, condição de toda a ruralidade a que não havia escapatória, a não ser para os afortunados que se lançavam mar além, na diáspora dos eldorados das Américas. Também se demandava a freguesia vizinha, os seus arraiais, as relações familiares, a troca cultural de vivências. Agora já nem tanto, até porque a frágil ponte que unia as margens da ribeira perdeu-se na violência das águas de 2010.

A vereda que hoje se transforma em trilho periódico de corrida foi testemunha de um modo de viver, ajudou a criar riqueza, marcou uma identidade, uma época, um sentir cultural. Deveria ser recuperada e mantida transitável? E como suportar o custo? Já ninguém irá trabalhar a terra, recuperar os terrenos, erguer as paredes como antigamente... E para visitar amigos, familiares e festividades há a comodidade do motorizado asfalto. Os caminhos fazem-se de presente... E nem todas as rotas detêm o valor peregrinante, dos Caminhos de Santiago, ou dos romeiros do Monte e da Ponta Delgada... Valor patrimonial? Turístico? Talvez. Bem, num tempo de imprescindíveis cálculos de custo-benefício, nem que seja para mais corridas de Trail...