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Quem sai aos seus, não degenera

Este modelo de autonomia não nos interessa, não nos traz nenhum benefício

A violência faz-se passar sempre por uma contra violência, quer dizer, por uma resposta à violência alheia

(Jean-Paul Sartre).

Na Madeira, desde que foi descoberta e povoada, se instalaram elites detentoras do poder utilizando-o em proveito próprio, com prejuízo da restante população, situação que chega aos nossos dias e que, atualmente se designa por “Autonomia”. Agem e reivindicam em nome da população, mas o seu intuito é o de defenderem os interesses próprios, bem como os dos seus amigos.

Recuando aos primeiros tempos da vida na ilha, Zarco, a quem tinha sido conferido pelo Duque D. Fernando o monopólio da venda do sabão, do sal, das serras de água e dos moinhos, era objeto das seguintes queixas, por parte da população:

- o preço exagerado pelo qual vendia o sabão,

- o mau serviço prestado pelos seus moinhos que não só se revelavam insuficientes como produziam farinha de má qualidade. Estas eram as razões pelas quais o mesmo povo pedia ao duque a transcrição da carta de mercê do capitão para que o dito capitão não se pudesse “estender para além dela”, o que levou o duque a nomear, em 1466, juízes ordinários para administrar a justiça e obstar, assim, aos abusos do capitão.

Em 1468 novas queixas desta vez contra Zarco e a mulher, acusados de não só não fornecer a terra com quantidades de sabão e de sal, mas ainda de os venderem por preços exagerados. O duque aceita e repreende o capitão.

Ao longo de toda a história, vários episódios documentam as ações das elites regionais no sentido de impedir que qualquer forma de poder interferisse com os seus interesses ou com as suas ações procurando inclusivamente livrar-se de cumprir as sentenças dos oficiais de justiça (enviados pelo Reino). O seguinte exemplo é deveras elucidativo:

- Em 1624 D. Francisco Henriques foi assassinado por três irmãos Freitas da Silva. O juiz ordinário era tio dos agressores e procurou impedir que fossem presos. Arranjou maneira de eles se escaparem para a Ponta de Sol onde tinham parentes. Aí um deles, Bernardo Freitas da Silva recebeu ordem de prisão do ouvidor e exibiu-a publicamente, garantindo que contra ele e contra os seus não haveria justiça. Teve de vir do reino um outro magistrado, um desembargador que não conseguiu mais que os criminosos fossem condenados a um exílio noutra parte da ilha.

O próprio rei estava consciente das dificuldades de aplicação local da justiça pois, no despacho de nomeação do desembargador, referia serem os Freitas da Silva praticantes de “excessos de isenção e superioridade, sendo muito soberbos, insolentes e poderosos” o que era causa que nenhum oficial de justiça se atrevesse a agir nas causas em que estavam envolvidos.

Em 1614, encontra-se novo registo que dá conta das dificuldades em aplicar a justiça numa carta de Filipe III em que o rei, aludindo a várias queixas que recebera relativas a mortes, insultos graves e escândalos que se verificavam na Madeira, referia andarem os culpados “publicamente na terra sem os ministros da justiça fazerem as diligencias quanto convinha para os prenderem nem a fazerem dos ditos casos como são obrigados” .

O mesmo sentimento de impunidade que percorria os poderosos madeirenses volta a encontrar-se nas Instruções dadas, em 1698, ao governador António Jorge de Melo, antes de este assumir o governo do arquipélago e destinadas a fornecer-lhe indicações do que o esperava e do que seria mais adequado fazer.

Assim, recomendava-se ao governante que, em questões de justiça, usasse de “muita manha, porque se quiser usar do poder somente, se não conseguirá coisa alguma”, acrescentando, depois, que “na terra não há com que fazer prisões porque nem os oficiais de justiça nem os de guerra dão à execução ordem que seja contra a queles homens com quem vivem e de quem são todos obrigados, compadres e afilhados (...) e dizem abertamente que o governador vai lá estar três anos, e que se indo, aqueles homens se vingam deles”.

Ao longo dos séculos deparamo-nos com inúmeros episódios semelhantes que por razões óbvias não poderemos aqui transcrever.

A colonização da Madeira fez-se através do sistema de sesmarias, através do qual o Capitão dava terras a quem as quisesse trabalhar, o que obrigou a que os sesmeiros vivessem nelas e as tornassem produtivas, com o auxílio dos seus criados e escravos. Cedo, porém, logo que as terras começavam a dar rendimento, os senhores vieram viver para o Funchal, deixando as terras entregues a um capataz, que administrava o sistema de colonia para isso introduzido. Dava-se assim origem a uma burguesia urbana e improdutiva, que chega até aos nossos dias, depois de apoiarem fervorosamente o Estado Novo. Quando foi extinta a colonia, esta elite, com o auxílio da Igreja, organizou-se e “tomou de assalto” a Administração Regional e todo o tipo de organizações desde as Casas do Povo até aos clubes desportivos. São hoje os reais “donos da autonomia”, os detentores do poder tanto político como económico, que tal como antigamente, serve essencialmente os seus interesses. AJJ, o tal da “máfia em bom sentido”, tentou regionalizar também a justiça, mas felizmente não conseguiu. Hoje os tempos são outros e a justiça é independente e funciona, mas os poderosos de sempre continuam. Passados 40 anos desta autonomia os madeirenses vivem pior em comparação com outras partes do país, apesar de toda a propaganda do Governo. Este modelo de autonomia não nos interessa, não nos traz nenhum benefício; interessa apenas aos donos das fortunas que surgiram dum dia para o outro e que, em algum dia, saberemos ao certo como.

Desconfiem quando ouvirem esta gente falar de autonomia, porque, no mínimo e com sorte, apenas nos estão a atirar poeira para os olhos.

Nota: ao longo do texto foram feitas várias citações, referidas entre aspas, cuja fonte aqui se não identifica devido ao espaço disponível e à natureza desta publicação.