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Parar antes

Vale, por exemplo, parar para pensar sobre “barrigas de aluguer”, a propósito dos gémeos de Cristiano Ronaldo

Vale por vezes a pena parar para pensar. Vale, por exemplo, parar para pensar sobre “barrigas de aluguer”, a propósito dos gémeos de CR7.

CR7 não é o texto, mas o pretexto. O ponto não é que CR7 o tenha feito, mas que qualquer um – menos habilitado do que ele – o possa fazer.

A gestação sub-rogada baseia-se num contrato que envolve três partes: o pai ou pais, o mediador e a gestante de substituição. A gestante dispõe-se a suportar uma gravidez por conta de outrem e entregar a criança no final do parto, renunciando aos poderes e deveres próprios da maternidade.

Em Portugal, a gravidez de substituição só é possível a título excecional e com natureza gratuita, nos casos de ausência de útero, de lesão ou doença que impeça de forma absoluta e definitiva a gravidez da mulher ou em situações clínicas que o justifiquem. E a gestante de substituição não pode, em caso algum, doar os seus ovócitos, o que significa que nunca é a mãe genética da criança. São nulos os negócios que não respeitem estas, e outras, muito sensíveis regras (artigo 8.º da Lei n.º 32/2006).

Fora de Portugal, não será sempre assim. É possível gestar a troco de dinheiro, tal como será possível que a mãe doe os seus ovócitos, e seja também a mãe genética da criança de que abdica.

Este caso será já de gestação sub-rogada comercial. E deve vir acompanhado de um debate diferente.

Há argumentos a favor. De princípio, os fundamentais direitos a procriar e à liberdade contratual. De facto, que seja a única forma de algumas pessoas serem pais. Que responda à natural vontade de deixar descendência. Que a gravidez seja um trabalho menos arriscado do que tantos outros. Que a sociedade já aceite práticas semelhantes – inseminação artificial, adopção, amas de leite – e a coerência obrigue a aceitar esta também.

Mas há argumentos contra.

Quanto aos filhos, a gestação comercial muda a natureza dos poderes paternais. Os “direitos” dos pais sobre os filhos são poderes-deveres fiduciários, atribuídos aos pais em benefício da criança. A renúncia a estes poderes a troco de dinheiro trata-os como direitos de propriedade, que podem ser vendidos para benefício próprio. E nenhum pai é dono do seu filho.

A gestação sub-rogada é ainda diferente de outras situações. O pai que fica com o filho não paga apenas pela gestação, paga também para ser pai em exclusividade. Quando os pais acordam que só um deles tem poderes-deveres quanto ao filho, não estão a dispor sobre um direito seu, estão a dispor sobre um direito do filho. E nada disto é provisório ou resulta – como na adopção – de um azar ou de um incumprimento.

Quanto à mãe, pergunta-se se pode antes da gravidez consentir, de forma livre e informada, na renúncia a uma criança que ainda não gerou. Será que consentiria no mesmo contrato depois da criança nascer?

Por estes motivos diz-se que o contrato é degradante para a criança e para a mãe. Para a criança, porque é no contrato tratada como uma coisa. Para a mãe, porque se obriga a trivializar os sentimentos de maternidade – genética ou de gestação – antes de esses sentimentos se terem formado. A degradação tem uma raiz comum: parte da ideia de que o laço entre mãe e filho se pode soltar a troco de dinheiro.

Tudo isto piora, claro, se houver disposição do material genético. A criança é tanto mais produto, e a gravidez tanto mais serviço, quanto mais o material genético seja escolhido e comprado: nesse caso, o próprio aspecto e aptidões da criança serão um resultado de forças de mercado.

Censuro? Não necessariamente. Há normas, tecnologia para mitigar estes riscos.

Mas censuro a cultura que se demite de pensar. Uma cultura de imagem, sentimental e sensacional, idólatra da expressão e vontade individuais, que encontra no dever e na moderação uma opressão totalitária. Este pensamento corrói uma sociedade livre. Viver em liberdade implica um risco congénito, que dita que nem tudo pode ou deve ser controlado voluntariamente. O risco de viver em liberdade tem de ser distribuído, e isso implica, para o cidadão, um vínculo involuntário para com a comunidade. Esse vínculo traz direitos e deveres irrenunciáveis. Deveres irrenunciáveis para com o próximo e para com o futuro, que atribuem à sociedade um sentido ético e histórico independente do indivíduo.

Parece despropositado, falar neste tipo de coisa num jornal regional. Mas penso o tema no limite e vejo mercados de jurisdição: países pobres a aprovar a gravidez sub-rogada, para que casais de primeiro mundo paguem a mulheres do terceiro para transportar o seu bebé geneticamente apetrechado. É por enquanto uma utopia (literalmente) saída de um livro de Aldous Huxley. Só que estas utopias trágicas nascem de dias como estes, em que despreocupadamente se admiram novas brechas nas fronteiras da nossa civilização.

Se esse futuro chegar, eu parei antes.