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Ó César!...

Lamento mesmo que os políticos continuem a subestimar a inteligência das pessoas

Depois de Mário Soares ter dito, em finais de 2014, que o processo que levou à detenção do “camarada” José Sócrates era um “caso político” e que todo o PS estava “contra esta bandalheira”, surgem agora altos dirigentes do partido a comentar publicamente o caso, tendo Carlos César, líder parlamentar e presidente do Partido Socialista, afirmado que se encontrava “entristecido” e até “enraivecido com pessoas que se aproveitam dos partidos políticos para ter comportamentos desta dimensão e desta natureza”, concretizando que “a vergonha até é maior porque era primeiro-ministro”. José Sócrates reagiu prontamente e ter-lhe-á feito a vontade anunciando a saída do partido.

Ora, não sei o que terá levado os dirigentes do Partido Socialista a emitir, neste momento, aquelas considerações públicas e sobre isso não me pronuncio. Não me pronuncio sobre a saída de José Sócrates do partido porque isso não me interessa nada. E obviamente, por respeito, por sensatez e por dever, também não me pronuncio sobre esta ou outra questão judicial. O importante é que o poder político perceba, sempre, e em qualquer circunstância, que não pode, direta ou indiretamente, por dentro ou de forma paralela, ousar condicionar ou interferir no poder judicial. O importante é que se cumpra a separação de poderes. Enquanto acreditar que as coisas são assim, estarei tranquilo. Se perder esta crença, reagirei.

O que me inquieta verdadeiramente agora é que tenha sido precisamente Carlos César a pronunciar-se sobre esta matéria, o líder parlamentar que, para além do mais, está – com outros deputados do PS, PSD e Bloco de Esquerda eleitos pelos círculos dos Açores e da Madeira – envolvido numa polémica por beneficiar, para as suas deslocações, de um apoio pago pela Assembleia da República em acumulação com um reembolso por ser residente nas Regiões Autónomas. Na prática, aqueles deputados terão beneficiado de um apoio financeiro para fazer face a uma despesa da qual acabaram afinal por ser reembolsados por outra via, a do subsídio de mobilidade. Recebiam mais quinhentos euros por semana, ou seja, mais dois mil euros por mês, e, tanto quanto foi possível perceber, ou não residem nas ilhas, ou não viajavam efetivamente, ou recorriam, depois, também, ao subsídio de mobilidade. Dito de outro modo, recebiam um valor para uma despesa que acabavam por não ter e ficavam com esse dinheiro. Parece-me que se trata de atuação que ultrapassa manifestamente a legalidade e não tenho quaisquer dúvidas acerca da censura ética que merece este comportamento que não podia deixar de ter consequências.

E Carlos César, naquelas circunstâncias, refugiou-se em Ferro Rodrigues, presidente da Assembleia da República, afirmando tratar-se de “procedimento num regime similar desde 1989”. Como se um moribundo “sempre foi assim” ou um cego “é um regime que vigora há mais de 30 anos” fossem argumentos. E procurou invocar a legalidade da atuação enquanto a Assembleia da República acabava por reconhecer que se impunha o “aprofundamento da discussão” que terá, entretanto, levado a Subcomissão de Ética a pronunciar-se no sentido de passar a ser a Assembleia da República a comprar diretamente os bilhetes de avião, o que, por si só, também não resolverá o problema. Pois bem, afinal não estava tudo bem e o discurso de César foi, perante factos absolutamente objetivos que não podia negar, demasiado pobre, muito vazio e absolutamente nebuloso, limitando-se a tentar evitar consequências.

Lamento mesmo que os políticos continuem a subestimar a inteligência das pessoas, numa espécie de esquizofrenia consciente. E sim, tem razão Fernando Medina quando alerta para a necessidade de “um maior padrão de exigência ética” numa classe política que se continua a automutilar, negando tantas vezes o óbvio, procurando refugiar-se numa legalidade virtual que não existe.