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Humordaçado

Rir continua a ser o melhor remédio para muitos dos males que afligem o Homem Moderno

“O humor não é um estado de espírito, mas uma visão do mundo” – Wittgenstein

Na sua raiz latina (humoris), os humores eram os líquidos do corpo humano, os fluidos corporais como o sangue, a linfa (ou fleuma), a bílis amarela e a bílis negra. Hipócrates terá sido o primeiro a relacionar os temperamentos com os bons ou maus “humores” de cada um. Este conceito manteve-se até final da Idade Média, e só a partir do século XVII a palavra “humor” passou a ter o significado que lhe damos hoje.

O helénico Aristófanes é provavelmente o mais antigo autor de textos humorísticos que se conhece, tão respeitado e aclamado quanto os seus compatriotas mais sérios e trágicos (Ésquilo e Sófocles, por exemplo). Na sua esteira, o romano Plauto deixou uma marca que perdurou durante séculos, ao ponto de ter influenciado autores como Shakespeare e Molière.

Na Idade Média, o humor perdeu terreno. A religião encarregou-se de o diabolizar e, a este propósito, é impossível não lembrar o livro “O Nome da Rosa”, de Umberto Eco, que tão bem retrata como “o riso é a fraqueza, a corrupção, a insipidez da nossa carne... o riso liberta o aldeão do medo do diabo. E o que seremos nós, criaturas pecadoras, sem o medo, talvez o mais benéfico e afectuoso dos dons divinos?”. Se bem se recorda quem o leu (ou mesmo quem viu o filme), o riso literalmente mata (para quem não leu nem viu, isto é o que se chama um spoiler).

A Bíblia, de facto, não é conhecida por ser uma obra especialmente bem-humorada. A maior parte dos personagens são sérios: Moisés não manda uma laracha a meio do deserto (“– Porra, malta, mais uns quilómetros de caminhada e o petróleo era nosso...”); Jesus também não é propriamente um tipo divertido, apesar do inúmero material para “stand-up” (que é, aliás, uma expressão que o Nazareno poderia perfeitamente gritar a Lázaro).

Com o Renascimento tudo muda, e o humor regressa em força: em Itália surge a Comedia dell’Arte; depois chega Shakespeare, para elevar e solidificar a comédia; e Cervantes, para escrever a melhor comédia de todos os tempos, “Don Quijote de la Mancha”.

Antes e depois, o estudo do humor foi tema para muitos filósofos: Sócrates, Aristóteles, São Tomás de Aquino, Kant e Hobbes, para citar apenas alguns, todos eles certamente cultores duma boa garagalhada.

Chegaram mesmo a ser desenvolvidas teorias do humor: a da Superioridade, a da Incoerência e a do Alívio serão, porventura, as mais propagadas, mas nenhuma delas logrou dissecá-lo na sua plenitude.

Freud andou lá perto, ao considerar o humor como forma de ludibriar a “censura” das nossas inibições internas (tal como os sonhos o fazem...).

Mas qual é, enfim, o objectivo desta pobre tentativa de condensar a história do humor num pequeno texto, já excedido no número de caracteres recomendados?

Tão somente reafirmar a importância do humor enquanto arma social e política dos fracos, motor duma cultura de divergência activa, a melhor forma de quebrar os pés de barro dos poderosos, de derrubá-los dos pedestais através do incomensurável poder do riso, da ironia, da mordacidade na exposição do ridículo.

Além disso, rir continua a ser o melhor remédio para muitos dos males que afligem o Homem Moderno. Por isso, há que resistir à tentação de o calar, de o esconder, de o tentar matar.

O Humor tem asas... deixem-no voar!