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“Houston, we REALLY have a problem!”

Vivemos tempos perigosos. Hoje, não são apenas os aparelhos que corporizam o sistema partidário das democracias ocidentais que são postos em causa. Os próprios sistemas democráticos são questionados, sendo esse o dado verdadeiramente relevante. As teorias da “consolidação democrática” - após um período de transição, que inclui a construção e solidificação da sociedade civil e o atingir de determinados padrões de desenvolvimento económico e social, a democracia consolida-se - deixaram de fazer sentido. Em resumo, até em alguns países onde se tinham registado avanços democráticos significativos, onde a democracia parecia consolidada ou a caminho da consolidação, existem retrocessos. As razões não são unânimes entre os investigadores, indo da incapacidade de adaptação de franjas significativas das populações ao ditames da globalização, passando pela inadequação de muitos atores e instituições políticos às exigências da “modernidade líquida”; pelo aumento das desigualdades fomentado, em alguns casos, por uma inadequada resposta à crise; pelo confronto entre aqueles que desejam mais abertura e aqueles que advogam mais “fechamento”, como sugere Jean-Werner Muller em “What is Populism (a 15 de Janeiro, o Observador publicou uma boa entrevista ao autor). O Relatório “Freedom in the World 2017” (www.freedomhouse.org), da “Freedom House”, mostra que pelo décimo primeiro ano consecutivo, a liberdade global conheceu um retrocesso. Em 2017, apenas 45% dos países do mundo podem ser considerados “livres”, enquanto os restantes 55% são classificados como “parcialmente livres” ou “não livres”. Países tão díspares como o Brasil, a República Checa, a Hungria, a Polónia, Espanha, a Tunísia, os Estados Unidos e, imagine-se, a Dinamarca, sofreram retrocessos democráticos , embora ainda sejam classificados como “free”. No total, 66 nações regrediram em termos de liberdades civis, em 2016. Nos últimos dez anos, as maiores regressões aconteceram em África, embora a Turquia ocupe o segundo lugar na lista, estando Rússia e Ucrânia muito bem classificadas neste ranking. Tal como a Venezuela, onde vivem tantos e tantos familiares de todos nós. Estes dados, embora factuais, devem ser cruzados para entender o estado global da democracia. Foram-no por Roberto Stefan Foa e Yascha Mounk, académicos das universidades de Melbourne e de Harvard, que definiram uma fórmula de três fatores para perceber os processos de “consolidação” e “desconsolidação” democráticos. Procuraram conhecer qual o grau de apoio popular à democracia; qual o apoio popular a formas de governo não democráticas; qual o grau de crescimento de movimentos ou de partidos abertamente antissistema. Os resultados da investigação foram publicados em Janeiro, no “Journal of Democracy” – pode ser lido livremente em www.journalofdemocracy.org - e são, no mínimo, inquietantes. Num artigo intitulado “The Signs of Desconsolidation”, concluem que existe um processo de “desconsolidação” em curso na maioria das democracias liberais. Feito o diagnóstico, num tempo em que os vírus populistas (de direita e de esquerda) e autocráticos ameaçam direitos que pareciam inalienáveis, qual é a cura? Em primeiro lugar, as elites políticas, económicas e culturais devem perceber que efetivamente, temos um problema. A esse respeito, a expressão “Houston, we have a problem” deve ser substituída pela expressão “Houston, we REALLY have a problem”, ou seja, não basta gritar que a democracia está ameaçada quando um Trump, um Maduro, um Wilders ou um Erdogan qualquer, gritando ser “a voz do povo”, ganha ou ameaça ganhar umas eleições ou um referendo. É preciso agir continuadamente. Adoptando, por exemplo, estratégias efetivas de combate à corrupção e às más práticas. Criando, por exemplo, mecanismos de comunicação adaptados ao século XXI, através dos quais se fomente uma aproximação real entre quem decide e quem escolhe, integrando e não excluindo. É fundamental explicar a decisão política e os condicionalismos que levaram a essa decisão. Sempre. É fundamental educar. Sempre. Educar para a participação. Educar para a vivência em comunidade. É fundamental criar mecanismos de integração efetivos. É fundamental combater a burocracia que afasta o cidadão da máquina administrativa e que, tantas e tantas vezes, contribui para a exclusão (a este propósito, aconselho vivamente “I, Daniel Blake”, o filme mais importante dos últimos anos para quem gosta de política). Estes são alguns contributos. Existirão outras propostas, mas sejam quais forem, devem ser construídas sobre a aceitação clara de que temos, realmente, um problema. Os cosméticos não resolvem problemas. Disfarçam-nos.