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Cultura de património

Falar de património leva-nos necessariamente a uma abrangência de questões

O verde ameniza o castanho do solo e substitui a tonalidade seca das ervas das suaves colinas, a habitual paisagem de estio, para os visitantes anuais da praia agora deserta, porque outro é o tempo, e o objetivo da visita à ilha não eram os prazeres da época balnear de verão. Felizmente o Porto Santo oferece outras potencialidades que no conjunto contribuem para o efeito terapêutico repousante, a atmosfera quase mágica de liberdade, infinito, absoluto da praia deserta nas manhãs e tardes de imensa maré baixa estival.

A ideia era subir à serra avistada do mar, ou do avião, descobrir encantos naturais descritos por amigos, adivinhados à distância. À medida que subimos ou contornamos os picos, - Castelo, Facho, Branco, Terra Chã - a vista prende-se na inóspita, mas bela e pouco divulgada paisagem da costa norte, na praticamente deserta Serra de Dentro lá em baixo. Os tufos amarelos das singelas flores das verdes azedas alegram aqui e ali, o chão parcamente regado pelas escassas chuvas da “terra amiga” do nosso centenário Max.

Na subida para o pico Branco, a nudez silenciosa do cenário campestre, pontuada de resistente vegetação rasteira varrida pelo gélido soprar do vento agreste convida a imaginar a vida das gentes de outrora, adivinhada nos rústicos trilhos hoje recuperados, nas ruinas de modestos casebres dispersos, deixados ao sabor do tempo nos suaves socalcos encosta acima, durante séculos semeados dos cereais da sofrida sobrevivência... Não admira o abandono de atividades, hoje económica e humanamente impraticáveis, neste como em outros lugares, lugar-comum de isoladas e sufocantes ruralidades insulares e desertificadas interioridades continentais profundas... E no entanto esta ilha há 600 anos “achada”, “descoberta”, terá sido reclamada como zona estratégica para o país de então... “Malhas que o império tece...”

Hoje em que das atividades tradicionais pouco mais resta do que mostras e registos museológicos e etnográficos, quando a sazonalidade da oferta turística e serviços afins, a par de algumas instituições públicas comandam a rentabilidade da população residente, importa pensar no futuro deste espaço. É natural e compreensível a ambição dos mais novos em rasgar horizontes, ganhar mundo além destas areias douradas... Mas a amenidade do clima, a bonomia das gentes, as qualidades da paisagem constituem um património como um todo, que merece por certo ser preservado e sustentavelmente usufruído. Discuta-se os parcos recursos financeiros insulares, a solidariedade nacional para com as descontinuidades territoriais, a questão da mobilidade, a dupla insularidade, etc., matérias a exigir uma forte dimensão de cidadania e cultura de património...

Falar de património leva-nos, necessariamente a uma abrangência de questões que se colocam do ponto de vista da sobrevivência, ameaças a não ignorar ou negligenciar: as questões ambientais, as alterações do clima, os imponderáveis das catástrofes naturais que apelam para a nossa fragilidade humana, por muito que de peito cheio de soberba nos julguemos quase deuses. Felizmente há questões que - bem-haja o bom senso! -colhem até unanimidade, como é o assunto das criminosas descargas poluentes no rio Tejo... Mas há outro elemento a ter em conta para a uma desejável cultura de património: algo que retenha os jovens nos espaços desertificados e os faça continuadores da história. A demografia, a renovação geracional, precisa deles. O património humano também faz falta.