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Abraço de Urso

Nós, madeirenses, sempre fomos dedicados e trabalhadores desde tempos imemoriais. Povoámos e desbravámos a ilha, fazendo deste arquipélago atlântico um lar com quase 600 anos de história. Fomos alavanca geográfica dos descobrimentos e aventuramo-nos ‘por esse mundo além’ na senda da prosperidade, levando na bagagem humildade, estoicismo e valentia. Os mesmos instrumentos com que os nossos emigrantes se afirmaram nos países que os acolheram, sendo reconhecidos como trabalhadores incansáveis e empreendedores audazes. Nunca precisámos de pedir licença a ninguém para arregaçar as mangas e arrepiar caminho no que ao trabalho diz respeito. Nesta perspectiva, não será por obra do acaso que no Hino da Madeira somos designados por ‘heróis do trabalho’.

Assim, numa altura em que a Madeira apresenta a população mais qualificada de sempre, sabendo que o trabalho está inscrito no nosso código genético e que nas últimas décadas dispusemos de abundantes recursos financeiros em condições irrepetíveis, é incompreensível que a região ainda se veja a braços com um crescimento económico anémico, carências sociais permanentes, indiferença ante a precariedade laboral e a mais elevada taxa de desemprego do país. O actual “estado a que isto chegou”, para usar a frase tornada célebre no estertor dos 41 anos de Estado Novo, é o reflexo de 42 anos de governação de um mesmo partido, ou seja, tempo suficiente para um trabalhador cumprir toda uma carreira contributiva e entrar na reforma. No princípio desta longa governação, num contexto autonómico e com uma democracia puérpera, colmataram-se necessidades básicas da população madeirense, acompanhando a infraestruturação que ocorreu no resto do país.

Rapidamente, a bem-intencionada estratégia com elevado potencial para um povo trabalhador, degenerou no facilitismo do modelo de desenvolvimento adquirido no pronto a vestir europeu, alicerçado no aproveitamento máximo de fundos comunitários, independentemente do património a edificar, nem preocupação com os efeitos socioeconómicos a médio prazo. Daqui emergiram todo o tipo de investimentos: matadouros, centros de saúde, piscinas, escolas, marinas, centros cívicos, campos de golfe, estádios, lares de terceira idade, vias rápidas e um aeroporto. Uma era dourada para a construção civil, em que todos teriam trabalho bem remunerado, directa ou indirectamente, no investimento público e onde, na cartilha de comunicação do GR, os indicadores de desempenho económico mediam-se pela quantidade de cimento vendido e pelos quilómetros de estrada inaugurados. Resultados? (i) Sete mil milhões de euros de dívida, (ii) degradação galopante dos activos por manutenção deficiente, (iii) dúzias de obras com patologias graves, (iv) dificuldades em assegurar o normal funcionamento de serviços na educação e na saúde, (v) contratos e concessões de longa duração lesivos para os contribuintes, (vi) milhares de pessoas desempregadas, (vii) função pública onde os mais capazes vêm-se ultrapassados pelos capazes de tudo, (viii) crescentes carências habitacionais, (ix) fragilidades sociais crónicas e (x) um executivo regional refém de credores antigos a gerir investimentos novos.

Actualmente, num governo regional eleito sem programa eleitoral e a cumprir o quarto ano de mandato, é gritante a ausência de soluções e notória a falta de uma estratégia para a RAM, cuja autonomia está transformada num amuleto para conjurar culpas a inimigos externos. Falta coragem para assumir a maioridade autonómica para além da retórica vazia de discursos espúrios. Falta liderar com responsabilidade os destinos de 270 mil madeirenses. Falta libertar-se de amarras tentaculares e assumir-se como regulador eficaz da economia, criando igualdade de oportunidades para todos os seus agentes. Falta deixar que o mérito corra livremente. Falta libertar a sociedade madeirense do asfixiante ‘abraço de urso’ que o PSD lhe inflige há demasiado tempo. Falta cumprir-se o nosso ADN. Sem medo do trabalho. Falta ser madeirense.