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A violência e o populismo

Nada mais realista do que a história de Deus na história dos homens e mulheres, nada mais realista do que o Evangelho

Depois de tudo quanto foi dito e escrito, não sei o que posso acrescentar ao atentado de Alcochete, mas há uma questão que não pode ser evitada: se há relação ou não entre o futebol do nosso tempo e a violência. Nisto, como em muitas outras formas de violência e, como dizia D. António Ferreira Gomes, o famoso Bispo do Porto, não é bom bater a culpa própria no peito dos outros.

Face aos ataques criminosos dos últimos tempos no desporto português que se têm multiplicado, a condenação tem que ser inequívoca. A violência cega dos atentados, cruéis actos abomináveis, que só causam terror, horror e medo são a antítese do espírito desportivo. A violência e o ódio homicida só conduzem à dor e à destruição, crime vil e insensato.

Os jogadores e técnicos, em Alcochete, foram vítimas da “barbárie absoluta”. Esta expressão entrou para a história porque ela tem a precisão e o poder de permanência de a “banalidade do mal” com que Hannah Arendt resumiu a fria eficiência da máquina de extermínio nazista.

Partindo da posição teórica de Hannah Arendt (que, contrariamente à grande maioria dos filósofos, sociólogos e estudiosos do direito e das ciências políticas, separa teoricamente o poder da violência) temos que o poder é a capacidade de agir em conjunto e a violência começa onde o consenso (e o poder) terminam. A violência, em síntese, é a expressão da impotência.

Estes recentes actos de violência como o de Alcochete e Bruxelas são autênticos “ataques” à civilização.

O terror de facto ronda a civilização, enfrentando na crescente população marginalizada de todo o mundo. Seus perpetradores são uma minoria, mas do tipo que se sente ainda mais forte quanto mais inocentes e indefesas forem as suas vítimas. No luto, devemos sacar da liberdade para confrontar a barbárie mas é preciso também pegar em armas menos simbólicas e abdicar de explicações vazias para crimes injustificáveis.

A posição teórica de Arendt torna-se muito frutuosa, pois fornece intrumentos para imaginar um roteiro eficaz para se compreender e lutar contra a violência, bem como para se construir relações não violentas, que a concepção da violência como algo inerente à animalidade desviada do ser humano não contém. Com a leitura dela percebemos que a violência deve ser analisada no funcionamento das relações humanas, sociais e políticas e no espaço que ela conquista ou perde nessa dinâmica: analisando-a, deve-se tentar colher os motivos e os objectivos do uso da violência, bem como o sentido da relação violenta.

Vivemos num tempo mergulhado numa crise que não se esgota nos fatores económicos e sociais em que muitas vezes nos focamos, mas se caracteriza por uma crescente ausência de valores morais e civilizacionais dados por adquiridos nas últimas décadas.

Esta crise de valores é bem patente, também, na proliferação de uma cultura de violência latente, que em Portugal encontramos num crescendo sistemático e preocupante.

Negar, cancelar os aspectos atrozes que compõem a vida e a história, passada e actual, só agrava a nossa vulnerabilidade frente à violência e acentua o risco de que nos tornemos inconscientes, o que não elimina a nossa responsabilidade, ao contrário, revela o quanto podemos nos tornar participes de um drama colectivo que se repete inúmeras vezes como agora aconteceu.

Impõe-se, pois, a reestruturação da personalidade que só pode acontecer num processo de conhecimento e de tomada de consciência quanto ao uso de violência nas relações humanas, que deveriam modificar o nosso comportamento social, o nosso modo de agir político e desportivo, a nossa ética.

Nada mais realista do que a história de Deus na história dos homens e mulheres, nada mais realista do que o Evangelho. Nele, Deus se compromete com a vida e a paz ao ponto de tornar-se vítima da violência para restaurar e instaurar definitivamente caminhos de paz.

Por isso, o nosso compromisso para com a paz não se reduza a acções; trata-se de cuidar para que o espírito profético de paz se incorpora em cada fio que forma o tapete e em cada mão que o teça. Cuidar para que a sua mensagem se encarne nas culturas, impregnando de paz as mentalidades, as relações sociais, os grupos e as instituições, e que sua presença viva reconduza constantemente o nosso povo para novas configurações da vida mais condizentes com o seu projecto.

A superação da violência está em conexão, isso sim, com a efectiva construção da democracia numa Europa onde os populismos ressurgem em força no século XXI e constituem um perigo para as democracias ocidentais.

O poder de atracção pela barbárie absoluta sobre os jovens radicais mostra que o mundo não está apenas horrorizado com a crueldade destes profissionais do terror. O mundo está perplexo.