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A casa da minha avó*

A casa da minha avó é uma dessas felizes recordações

Nos anos sessenta do séc. XX, o João emigrou para fugir à guerra do ultramar e à vida dura do campo. No entanto, logo no dia da partida, enquanto as lágrimas teimavam sair, o João já sentia saudades da terra que abandonava. A casa da minha avó é uma dessas felizes recordações.

A casa da minha avó

de pedra era formada,

parecia muito pobre

mas ali nada faltava.

Ao lado a furna de fumo

onde a fome se enganava,

o chão de terra batida

ali descalço brincava.

À noite ouvia os grilos,

uma coruja piava,

o silêncio escurecia,

lua na janela entrava.

Não tinha televisão

nem eletricidade,

mas era mais confortável

que palácio na cidade.

A casa da minha avó,

no fundo ela ficava,

pra lá descia e subia

mas nunca eu me cansava.

Milho frio na panela

dava pra toda a semana,

comido até o esturro

se não mata a fome, engana.

Se panela está vazia

e a lareira arrefeceu,

todo o mundo tá com fome

ou a gente já comeu.

Lá longe toca o sino

a gente logo parava,

pra rezar ave-maria

pra capela a gente olhava.

À noite todos à mesa,

felicidade brotava,

candeeiro a petróleo,

a alma alumiava.

Avó começava o terço

e a gente acompanhava,

depressa chega o sono,

eu fingia que rezava.

A casa de minha avó

não sei que magia tinha,

até nos dias mais frios

era uma casa quentinha.

Tudo era muito simples,

a vida bem decorria,

o tempo que não passava,

alegria acontecia.

* Extrato autorizado do livro ‘Saudades do Inferno’, de Filipe Corujeira, a publicar em breve.