Análise

Transparência e honestidade

O País ficou chocado com os pormenores sórdidos do escândalo que enlameia a Associação Raríssimas. O desfilar de comportamentos e actos perpetrados pela sua fundadora enraivecem o cidadão cumpridor e solidário. Como se pode utilizar causas nobres em proveito pessoal, para enriquecer, viajar, adquirir bens supérfluos, inacessíveis à maioria dos que contribuem para ajudar os que precisam realmente? Na podridão que extravasou e muito os muros da Raríssimas, mas não o ego e a cega ambição de Paula Brito e Costa foi apanhado, no circuito, peixe graúdo, com influências no mundo da política, nos gabinetes dos que mandam, que se movimenta junto do decisor que tem a chave do cofre público. A reportagem que a TVI serviu em generosas doses durante a semana revolveu entranhas, mesmo as dos que já não acreditam na benevolência descomprometida dos que dedicam a vida a ajudar os que mais precisam. Se não bastasse a apropriação de uma causa por uma pessoa sem escrúpulos, sequiosa de palco e de ribalta, o envolvimento de figuras governativas, no caso do antigo secretário de Estado da Saúde, é aterrador. Manuel Delgado ‘comeu’ na gamela onde caiam os milhões de euros canalizados pelo Estado para os beneficiários dos serviços daquela associação, portadores de doenças raras. E não se ficou por aí. Segundo imagens exibidas pela TVI, passeou-se por terras de Vera Cruz abraçado a quem lhe assinava o cheque da consultoria caritativa que mantinha com a Raríssimas. Os interesses públicos caldeados em evidente romance, tendo por cenário de fundo um areal dourado ao pôr-do-sol.

O tempo é agora da Justiça. Que seja célere e puna quem tenha de punir.

Mas a questão não se fica no âmbito da lei. Passa sobretudo pela ética, palavra tão cara e usada levianamente por quem tem responsabilidades públicas num país onde o tráfego de influências, a cunha, o favorzinho, a palavrinha, continuam a fazer caminho. Cada vez mais difícil é ver gente com coluna vertebral, irrepreensivelmente honesta, com carácter à prova de bala.

No mundo da política – há excepções como é óbvio – muitos usam os seus cargos para benefício próprio. Exemplos não faltam. Basta estarmos atentos. Recentemente soubemos que um deputado europeu português dá emprego a dois familiares directos no seu gabinete, contrariando as recomendações do Parlamento Europeu. Esse mesmo parlamentar foi apanhado numa investigação jornalística que denunciou o recebimento de somas avultadas de uma ordem profissional – a dos Contabilistas - num processo que pode ter escudo legal mas que levanta muitas dúvidas em termos éticos. Um dos candidatos à liderança do PSD, Rui Rio, foi também envolvido na notícia do Observador por auferir na mesma ordem quantias mensais simpáticas pelo desempenho do cargo de vice-presidente da respectiva assembleia-geral. O homem, conhecido pela mão férrea com que conduzia as contas da Câmara do Porto e que defende um “banho de ética” na política nacional, recebe 1.500 euros brutos mensais, para marcar presença em apenas duas assembleias anuais. Valeram-lhe 21 mil euros! Nem nas maiores empresas cotadas se encontra paralelo. Com que ética pode esta gente, quando está em cargos de topo na administração pública, pedir sacrifícios às pessoas que se esfalfam a trabalhar para receberem – na maior parte das vezes – uma quantia muito inferior?

Enfim, os exemplos de favorecimento e promiscuidade são extensos na democracia portuguesa. Existe ainda um grande fosso patente na sociedade, que uma cultura de subserviência, onde impera o respeitinho pelas figurinhas gradas não ajuda a alterar.

Não são admissíveis casos como estes acontecerem e – pior – perdurarem durante tanto tempo sem que ninguém seja incomodado.