A espinha dorsal da nossa terra

No sítio do Lombo Grande, na freguesia de São Roque do Faial, em Santana, residem 17 pessoas, e desse número subtraem-se duas crianças

Há cerca de 12 anos foi construída a via de acesso ao local que perfaz um total de 2,1 quilómetros. Fotos Estefânia Câncio Ver Galeria
Há cerca de 12 anos foi construída a via de acesso ao local que perfaz um total de 2,1 quilómetros. Fotos Estefânia Câncio

Questionámo-nos antes de visitar este sítio, qual era o sentido por detrás do seu nome. A verdade é que depois de voltarmos a casa tirámos as nossas próprias conclusões: entendemos que lombo não significa por si só a alta encosta onde este local se insere, mas, isso sim, o facto de quem ali viveu e vive não conseguir esconder as marcas de uma história carregada às costas.

No Lombo Grande marcou-nos de forma vincada a ruralidade madeirense, com os diversos traços cavados e encravados nas mãos e espinha dorsal daqueles que se dedicaram a uma actividade que ainda hoje dá sustento aos seus últimos 17 habitantes: a agricultura.

Já foram perto de 50 o número de residentes desta zona pertencente a São Roque do Faial, que dista cerca de quatro quilómetros do centro da freguesia. A maioria morreu, outros emigraram, mas também houve aqueles que foram em busca de um sítio “melhor” para viver, aqui na Madeira, e tivemos a sorte de falar com quatro.

“Tenho medo de ir ao Funchal”

Sentou-se à beira da estrada quando lhe abordámos, e enquanto raspava a sua foice no muro, com um olhar vago, falou sobre a vida, numa conversa que se desenrolou ao som do chilrear dos bis-bis, que tinham acabado de despertar e pareciam fazer jus à especificidade destas pessoas e deste local, numa atmosfera endémica.

Maria Silva tem 70 anos e é a que carrega mais sabedoria no Lombo Grande. Tinha acabado de chegar à estrada vinda da fazenda. “Estive plantando semilhas”, adiantou a septuagenária, acrescentando que é a terra que lhe dá “força”, mas também a sua maior “distracção”.

“Para mim está quase dando, já me custa cavar”, prosseguiu Maria Silva, que teve oito filhos e apenas um deles, de “30 e tal anos”, decidiu continuar a residir na sua moradia.

Em relação aos acessos, a nossa primeira entrevistada explicou que vai pela antiga vereda de ligação ao centro da freguesia quando há missa, um percurso que faz em 30 minutos.

“Eu cá vou a pé para a missa. Pela estrada demoro muito tempo, mais vale ir pela vereda”, disse, frisando que até nem é hábito sair muitas vezes do Lombo Grande, sobretudo devido a um susto que apanhou aquando de uma visita à azáfama da capital madeirense.

“Não costumo sair muitas vezes, só quando tenho mesmo de ir ao Funchal, e até nisso já tenho medo, porque uma vez fui à cidade e um carro parou mesmo ao meu pé. Quase era atropelada”, afirmou.

Visivelmente emocionada, e recordando toda uma panóplia de acontecimentos recentes da sua vida pessoal, quase como um desabafo íntimo de alguém que não tem gente próxima para confidenciar, percebemos que a conversa deveria terminar por ali.

Com a presença do seu cão, acompanhámos Maria da Silva à porta de casa, junto à vereda, e prosseguimos o nosso caminho à procura de novos intervenientes. Sem muita surpresa, a nossa próxima entrevistada estava na fazenda, a cultivar.

“Temos de sair para nos distrair”

Maria Gouveia estava a mondar, entenda-se na gíria por apanhar ervas. Vive no Lombo Grande há 18 anos, porque casou com um habitante natural deste local.

“Temos de trabalhar na fazenda para viver. Tinha um marido que vinha para a fazenda, mas deu-lhe um AVC e agora sou eu que tenho de estar aqui sozinha”, começou por referir a residente, que brincou quanto ao facto de estar “quase no rol dos velhos”, fruto dos seus 58 anos de idade.

Ainda sobre a agricultura, ficámos a saber que as últimas condições atmosféricas fizeram perca, sobretudo o vento. “Quando ele vem não faz nada que preste e não se pode fazer barulho”, continuou, de forma divertida.

Sobre a velha questão colocada nas ruralidades, que passa por saber se os residentes acham que o resto da população madeirense sabe onde vivem, Maria Gouveia foi categórica na resposta: “As pessoas do Funchal que não souberem onde isto fica há uma placa lá além”, atirou.

Numa zona em que apenas vivem duas crianças, os seus residentes são na sua grande maioria idosos, mas Maria Gouveia lembrou que “as pessoas isolam-se se quiserem”.

“É só sair de casa e falar com alguém. Temos de sair para nos distrair e não ficar fechados, senão as coisas pioram. Aqui isso não acontece, porque todos saem e vão para a fazenda”, salientou a entrevistada, destacando este ponto como um aspecto positivo.

“Ninguém faz nada por este sítio”

Mais a baixo estavam Abel e Vítor Figueira, pai e filho, respectivamente, a podar a vinha, onde de resto nos viríamos a abancar para conversar. O residente foi aquele que nos deu a visão mais crítica de todas, exclamando que “ninguém faz nada por este sítio”.

“Fizeram a estrada e mais nada. Até o pessoal da Junta que estava aqui a limpar as veredas eles tiraram. Agora estão todas cheias de mato e antes estavam sempre limpas”, acusou o morador.

A verdade é que a via de acesso em alcatrão, com uma extensão de dois quilómetros, foi importante para que os residentes não tivessem de percorrer uma via enlameada, mas os perigos continuam à espreita para quem ouse circular ali.

“A estrada tem cerca de 12 anos, talvez nem chegue, porque primeiro foi a Junta que alcatroou uma parte junto às casas, mas depois a câmara teve vergonha e fez o resto. Ainda assim, eles não limpam as derrocadas. Já tem lá uma desde sexta-feira. Vêm com uma máquina e arrastam para as levadas e assim fica tudo entupido”, lamentou Abel Figueira, sob o olhar atento do filho, de 22 anos.

Calado até aquele momento, como sinal de respeito pelo tempo de antena do pai, quisemos saber o que Vítor fazia por ali. “Desisti da escola no 9.º ano. Não tinha mais pachorra”, disse o primogénito, adiantando que nem sabe se quer voltar a estudar.

“Costumo ajudar o meu pai na fazenda e algumas pessoas às vezes falam comigo para me dar um dia de trabalho. Cada um dá o que pode”, explicou Vítor Figueira.

Acerca das vantagens de viver no Lombo Grande, o pai diz que “desde que anoitece não se sente nada”, descrevendo o sítio como “calmo” e muito “relaxante”.

“Desligo a televisão às 22h30 e de manhã venho para a fazenda”, elucidou-nos então sobre a sua rotina, aproveitando a presença do filho para explicar o porquê de não valer a pena cultivar outros produtos para além de semilhas ou uvas: “Para quê? Hoje em dia não vale a pena vender e os mais novos não comem verduras!”.

“É um sítio isolado”

“Só não vê quem não quer que este é um sítio isolado”, constatou de seguida Abel Figueira, dando então outra expressão ao que sentia: “Nem todos têm a sorte de nascer no Funchal”.

O homem de 58 anos disse ainda que quando vai ao Funchal, por exemplo, à Loja do Cidadão, dizem-lhe que a morada “é grande”, mais uma razão pela qual a sua tese saiu reforçada, isto é, a de que “muito poucos conhecem o Lombo Grande” e “ninguém quer vir para aqui”, a não ser turistas.

“Quando está bom tempo vemos muitos estrangeiros aqui, especialmente no Verão, para fazer a levada que vai ter à Terra Baptista, no Porto da Cruz”, indicou, explicando que também dá para fazer um desvio para o Parque Natural do Ribeiro Frio, que “fica mesmo ali atrás”, que é como quem diz, a aproximadamente sete quilómetros.

De facto, o percurso foi recuperado em 2011 e é um dos chamarizes do Lombo Grande, que lhe permite visitar a Ribeira do Ribeiro Frio e a nascente do Castelejo, uma das mais importantes do Norte da ilha. Se ficou curioso em conhecer de perto um local que lhe oferece, entre tantas outras oportunidades, uma vista de cortar a respiração e a humildade das suas gentes, não perca tempo, faça-se à estrada, e talvez lhe sirvam vinho tratado no fundo de uma garrafa de plástico, cortada para servir de copo, tal como nos aconteceu quando estávamos prestes a sair.